ABC do CDC

Shows cancelados: o direito ao reembolso

Shows cancelados: o direito ao reembolso.

18/3/2021

Por causa da pandemia da Covid-19 algumas leis foram aprovadas visando manter um equilíbrio entre a oferta do produto ou do serviço e a aquisição pelo consumidor.

Hoje abordo um ponto, com o seguinte acontecimento: o consumidor adquiriu o ingresso para assistir a um show de um específico artista estrangeiro. Por causa da pandemia, o show foi adiado. O fornecedor deu a ele, então, um crédito para que possa ir ao evento na próxima data a ser anunciada. Aliás, a lei 14.406, de 24/8/2020 garantiu esse direito.

Acontece que, passadas algumas semanas, o artista informou que não fará mais o show no Brasil. Ele cancelou definitivamente sua apresentação.

Pergunto: e agora? O consumidor é obrigado a ficar com o crédito para assistir um outro show?

Respondo na sequência.

Primeiramente, anoto que lei supra referida não é de todo fora de contexto. Na realidade ela apenas reconheceu o grave problema dos adiamentos de eventos por causa da pandemia.

Já escrevi aqui mesmo nesta coluna que o evento da Covid-19 é algo extraordinário e assim deve ser encarado do ponto de vista jurídico. Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não apresenta como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior. Mas, essas hipóteses são de fortuito interno e força maior interna. 

Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami).

E, naturalmente, o mesmo se deu e se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da Covid-19. Evento absolutamente fora de qualquer possibilidade de previsão e, infelizmente, inevitável.

Reforço que todas as relações jurídicas foram afetadas. Falo de todas porque  ninguém escapou. A diferença para alguns é que o evento acabou trazendo benefícios, pois puderam produzir e vender mais, os estoques acabaram etc. Porém, em milhares, aliás, milhões de relações jurídicas (de consumo ou não) a situação, de fato, foi e é de prejuízo para os dois lados da relação (ou para os vários lados da relação).

Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor.

E não resta dúvida alguma de que, se o evento, qualquer que seja ele, estava marcado para datas dentro do período de quarentena, ambos os lados da transação (consumidor e fornecedor) podem simplesmente rever o negócio, sem possibilidade de cobrança de multa ou de pagamento de indenizações.

Muito bem. Seguindo essa linha, a lei 14.406, de 24/8/2020 regulou a questão dos adiamentos e cancelamentos de eventos, shows etc. Para o que nos interessa aqui, faço referência ao artigo 2º e seu parágrafo 6º.

Com efeito, dispõe o caput do art. 2º:

"Art. 2º  Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:

I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou

II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.” (grifei)

Os cinco primeiros parágrafos desse artigo regulam prazos e o parágrafo 6º estabelece o seguinte:

“§ 6º  O prestador de serviço ou a sociedade empresária deverão restituir o valor recebido ao consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, somente na hipótese de ficarem impossibilitados de oferecer uma das duas alternativas referidas nos incisos I e II do caput deste artigo." (grifei)

Vejamos então, o que está acontecendo: como na redação do §6º o legislador se utilizou de uma disjuntiva (ou), então, se o fornecedor oferecer qualquer das duas alternativas, cabe ao consumidor aceitá-las e pronto. No caso do referido show do artista estrangeiro, basta remarcar o evento ou, na sua impossibilidade, oferecer crédito para o consumidor utilizá-lo em outro evento.

De fato, talvez isso resolva muitas hipóteses. Mas, retorno à minha pergunta: e se o artista cancelou, o consumidor é obrigado a assistir um show de outro artista?

Ou, perguntando de outro modo: o consumidor comprou uma coisa e a lei o obriga a levar outra?

Minha resposta é não!

A lei é clara, mas o inciso II do art. 2º somente pode ser entendido como uma opção oferecida ao consumidor. Jamais uma obrigatoriedade, pois isso viola um princípio básico do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que é o da liberdade de escolha (art. 6º, inciso II do CDC).

Não nos esqueçamos que o CDC é uma lei geral de ordem principiológica, que não pode ser simplesmente contrariada. Para tanto, seria necessário sua modificação ou uma ampla regulação do setor por normatização completa, o que, naturalmente, não é o caso da lei 14.406 acima citada.

E mais: a situação regulada pela lei é estranha. Ela não pode obrigar o consumidor a adquirir algo que ele não queira. Seria o mesmo que obrigar um consumidor que encomendou uma roupa, que não será mais entregue e obrigá-lo a ficar com uma mala; ou que adquiriu um ingresso para assistir a uma palestra de um importante comunicador, que não mais virá, e obrigá-lo a receber, em seu lugar, um ingresso para um show musical etc. Os exemplos são inúmeros.

O fato é este: não pode a lei obrigar o consumidor a comprar algo que ele não escolheu. Direito de escolha é uma garantia fundamental.

Lembro que, mesmo nos casos de vícios dos produtos e serviços, o CDC garante ao consumidor seu direito de escolha. Ele pode aceitar a substituição do produto ou a restituição da quantia paga (art. 18, § 1º,  incisos I e II e art. 19, caput, incisos III e IV) e a reexecução do serviço ou a restituição da quanta paga (art. 20, caput, incisos I e II). Realço: quem escolhe é o consumidor. Essa é a regra e o princípio que valem.  

Por fim, consigno que, claro,  concordo que a lei pode regular prazos. Mas, repito: no caso que citei do cancelamento pelo artista, se o consumidor não quiser trocar por outro evento, o valor que pagou deve ser devolvido.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.