Como se sabe, várias companhias aéreas oferecem programas de benefícios de fidelidade ao consumidor. Este acumula milhagens, que pode usar na compra de passagens aéreas, upgrade etc.
Muito bem. Já mostrei aqui, mais de uma vez, que o fornecedor corre riscos no seu empreendimento. É o chamado risco da atividade: o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo – que, diga-se, não lhe pertence – e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou, em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração.
Decorre disso que, quem se estabelece, deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar, não só para buscar evitá-los, mas também para se prevenir sobre suas eventuais perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas, deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.
O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). E a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa).
Acontece que, no que respeita ao transporte, o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte:
"Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade".
Pergunto: existe incoerência ou contradição entres esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno.
Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantêm o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos. Isso vale para o serviço de transporte, para o serviço de hospedagem, para os pacotes de viagem etc.
Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador ou pelo administrador do hotel, nem por eles evitado. Todavia, não elidem a responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar.
Contudo, quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser previsto. Ocorre igualmente em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). E, claro, o mesmo se dá na eclosão de uma pandemia, como esta da Covid-19.
Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados por causa das medidas de segurança adotadas.
Por outro lado, os consumidores que cancelam os voos marcados ou mudam a data da viagem também não podem ser responsabilizados, estando livres do pagamento de multas e, aliás, se não puderem mais viajar, podem simplesmente pedir o reembolso dos valores pagos.
Eis o ponto importante: o evento incerto, isto é, o fortuito externo atinge inteiramente a relação jurídica de consumo. Vale dizer, afeta os dois lados da relação, o do fornecedor e o do consumidor. Se não se pode responsabilizar o companhia aérea pelo cancelamento do voo, também não se pode responsabilizar o consumidor.
Agora, pergunto: e o que acontece com as milhagens que a cia aérea oferece de forma cumulativa?
Explico. Algumas cias aéreas oferecem benefícios especiais aos consumidores fiéis que viajam com elas constantemente. Por exemplo, se viajam 10 mil milhas ganham um cartão prata, se viajam 20 mil milhas ganham um cartão ouro etc. Em cada uma dessas categorias os benefícios são diferenciados: atendimento Vip no aeroporto, com sala de espera especial, escolha de poltronas mais confortáveis, troca mais barata para classe executiva etc.
Acontece que, com a pandemia, milhares de consumidores que gozavam desses benefícios não puderam viajar e algumas cias aéreas passaram a trocar o consumidor para uma categoria inferior por causa disso. Por exemplo, quem era ouro foi rebaixado para prata.
Para se manter no padrão ouro, o consumidor deveria ter viajado uma certa quantidade de milhas, o que não pôde ser feito.
Isso está correto?
Certamente, não!
Do mesmo modo, que o fortuito externo afetou a relação jurídica nos cancelamentos de voos e de reservas (de lado a lado), sem que isso pudesse gerar responsabilidade por danos de uma parte à outra, não pode a cia aérea cancelar o benefício oferecido pela falta de voos no período da pandemia.
Ela está obrigada a manter a categoria do consumidor até o fim das medidas excepcionais existentes em função da pandemia.
Não se trata de uma responsabilidade por dano direto, mas da obrigação de garantia de um direito pré-estabelecido que, uma vez retirado, gera perdas ao consumidor.