Mais uma vez, no último artigo do ano, eu abandono o tema do consumidor e publico um texto para a época de Natal.
Hoje, apresento um outro trecho do meu romance "A Visita". Trata-se de uma fala do personagem principal para seus amigos e amigas.
Eis o trecho:
"(...) Estava sereno, tranquilo e as palavras saíam naturalmente. Disse:
Camila, as crianças e eu estamos muito felizes de recebê-los aqui nesta noite em que comemoramos dezoito anos de nosso casamento. Eu gostaria de dividir com vocês um pensamento e uma história... Ouçam. Esse é o pensamento: Deus nunca chega tarde... Agora, eu narro a história...
Numa pequena cidade do interior deste nosso Estado, há uma associação cristã que atende a famílias carentes. Ela recebe doações de mantimentos de todo tipo, produtos de higiene pessoal, brinquedos, roupas etc. e, naturalmente, dinheiro. Todo mês, as famílias carentes cadastradas vão até a sede da associação para receber o que precisam...
Dona Elvira, a presidente da associação, uma pessoa maravilhosa, a havia fundado com o dinheiro que recebeu de herança muitos anos antes. Lourdes, sua filha de quatorze anos, adora ajudá-la na recepção dos produtos doados e na distribuição às famílias carentes. Uma vez por mês, nos domingos pela manhã, Dona Elvira faz uma reunião para a qual são convidados os doadores. Ela estabeleceu uma tradição: as pessoas que comparecem assistem a uma palestra, tratando de temas filosóficos ou cristãos, proferida por algum convidado especial. Quando a exposição termina, abre-se um debate e, ao final, todos rezam. Mas não se trata de uma reza comum. Não. Eles rezam pelo bem de alguém que não está presente. Funciona assim: o convidado levanta-se e apresenta-se; depois, indica uma pessoa e diz o que ela fez de bom para si ou para outrem. Daí, todos oram por essa pessoa. Rezam para que ela seja feliz e receba proteção divina... Algo muito bacana, não acham?
A pessoa que recebe a benção da oração não sabe que essas outras bondosas pessoas estão lá a rezar por ela. Na verdade, nem sabe que elas existem. A pessoa ganha esse presente porque merece!
Dona Elvira deixa os convites para a reunião mensal em cima do balcão de entrada. Qualquer pessoa pode pegá-los, levá-los e distribuí-los...
Muito bem. Vejam agora o que aconteceu... Num certo fim de semana anterior ao da reunião, Lourdes pegou alguns convites e perguntou para a mãe: 'Posso distribuir os convites nas casas da redondeza?'. Dona Elvira, a mãe, disse: 'Não há necessidade, querida. Muitos convites foram retirados e, por aqui na vizinhança, todos sabem da reunião'. 'Mas, mãe', objetou Lourdes, 'e se alguém nunca tiver recebido? E não souber das reuniões?'. 'Não tem problema. Nossas reuniões são um sucesso. Estão sempre cheias'. A jovem Lourdes insistiu: 'Ah, mãe, não sei... Pode ser que alguém precise e não saiba. Eu olhei para os convites e eles me chamaram. Estou com muita vontade de deixá-los pelas casas. Mal não vai fazer, não é? Posso entregar? Posso, posso?'. Diante da insistência da filha, Dona Elvira permitiu, mas alertou: ‘'Está bem. Pode ir. Mas não vá muito longe, ok?. E não demore. São três horas. Volte até as cinco'. Lourdes recolheu os folhetos e saiu saltitante. Andou bastante e entregou quase todos. Quando eram quase cinco horas, só lhe restava um folheto. De repente, viu, ao final de uma rua sem saída, uma casa isolada, após um terreno baldio. Olhou para o folheto, depois para a casa novamente e resolveu ir até lá para entregá-lo. Apressou o passo, pois estava quase na hora de voltar e ela não gostava de desobedecer a mãe...
A casa estava toda fechada, portas e janelas. Lourdes tocou a campainha. Ninguém atendeu. Tocou novamente. Sem resposta. Tentou uma terceira vez e nada. Sentou-se ao pé da porta e pareceu-lhe que havia gente lá dentro. Então, encostou o ouvido na madeira da porta. Ouviu um ruído. Tocou novamente a campainha, mas sem tirar o dedo por quase um minuto. Uma luz, então, foi acesa no interior da casa. Logo depois, a porta se abriu e surgiu uma senhora de idade avançada. Não tinha cara de bons amigos e perguntou com uma voz amarga: 'O que você quer?'. Lourdes estendeu o braço, entregando o folheto e disse: 'Jesus te ama!'. Lágrimas desceram pelo rosto da senhora, que a abraçou e apenas disse: 'Obrigado!...'.
"No fim de semana seguinte, ocorreu a reunião. Depois da palestra e dos debates, três pessoas pediram que todos rezassem pela alma e pela vida de outras que indicaram, contando o que de bom elas haviam feito. E, como sempre, foi um momento bonito e tocante...
"A quarta e última a falar foi uma senhora que se sentara no fundo da sala. Ela levantou-se e falou: 'Eu venho pedir que rezemos por uma menina. Não sei o nome dela, mas tenho a imagem de seu rosto iluminado aqui comigo em meu coração. Ela deve ter quatorze, quinze anos, olhos e cabelos castanhos, uma franjinha caindo na testa – quando a vi, estava de rabo de cavalo –, tem duas maçãs do rosto bem salientes, um sorriso amplo, com dentes perfeitos... Vim pedir que rezemos por ela... Eu sou viúva há dez anos e vivo sozinha numa casa que fica no fim de uma rua perto daqui. Meu filho Jorge mora em outro Estado distante e está sempre muito ocupado com sua mulher e seus próprios filhos, de modo que pouco fala comigo. Faz tempo que nem me telefona. Minha filha, Marta, é um sucesso. Tornou-se médica e vive, literalmente, o dia inteiro dentro de um hospital na capital federal. Se envolveu tanto com o trabalho, que se esqueceu de que ainda tem mãe. Para piorar, minhas duas melhores amigas faleceram há três anos. Eu não aguentava mais minha solidão. Há cerca de seis meses, comecei a me sentir tão mal, tão abandonada que não via outra saída. Comecei, então, a me preparar para minha morte. Não foi uma decisão fácil e, também, é muito complicado escolher a forma. Poderia ser muito ruim, poderia... Em vez de morrer, eu ficaria muito doente. Mas eu havia encontrado o caminho: tomaria todos os meus medicamentos de uma só vez, esvaziando as embalagens. Seria certeiro. Estava tudo pronto. Eu iria executar o plano na semana passada, domingo à tarde...'.
'Então, domingo eu nem almocei. Comi apenas um pão pela manhã. Lá pelo fim da tarde, eu peguei uma garrafa de água, todos os remédios (que são muitos) e levei tudo para meu quarto. Olhei bastante para a foto de meu falecido marido, Gusmão. Disse para ele em voz alta: 'Desculpe, querido. Não aguento mais. Espero que você possa me amparar quando eu sair daqui'. Abri a garrafa e deixei-a ao lado do copo. Tirei os comprimidos das caixas e os coloquei em fila. Eram dezenas'.
'De repente, ouvi a campainha tocar. Fiquei paralisada e em silêncio, aguardando que a pessoa fosse embora. Passou um pouco e eu enchi o copo com água. A campainha tocou de novo. Continuei quieta. Depois, juntei os comprimidos em grupos de quatro ou cinco. Ouvi a campainha novamente. Aguardei mais um pouco e, como se fez silêncio, pensei que a pessoa tivesse desistido. Daí, comecei a execução: coloquei os primeiros comprimidos na minha mão esquerda e peguei o copo cheio de água com a mão direita. Quando ia colocar os comprimidos na boca, a campainha recomeçou a tocar e, dessa vez, sem parar, ininterruptamente. Larguei os comprimidos na cama, devolvi o copo de água para a cômoda e desci para a sala. Abri a porta e lá estava aquela menina, brilhando como o sol. Ela me entregou um folheto e disse: 'Jesus te ama!'.
'Naquele instante, meu coração se aqueceu de um modo que não se aquecia há muitos anos... O resto vocês já sabem, porque estou aqui em corpo e alma. Essa menina me salvou. Rezemos por ela'.
Assim que a senhora sentou-se, Dona Elvira tomou a palavra e, dirigindo-se a ela, disse: 'Jesus te salvou' e, depois, dirigindo-se aos demais presentes, falou: 'Vamos rezar pela Lourdes. A menina é minha filha'".