Esta situação inusitada trazida pela pandemia do Covid-19, com isolamentos por todo lado, fechamento do comércio, perda de empregos, aulas à distância, afastamento das pessoas entre si etc. me fez pensar, mais uma vez, no sonho de obtenção de um capitalismo mais honesto e uma sociedade mais justa.
Em matéria de capitalismo, lembro que o nosso Código de Defesa do Consumidor – que já tem 30 anos de existência – criou um novo patamar de respeito para as relações de consumo. Foi uma luta aprová-lo, mas ele acabou surgindo, tardiamente, mas veio. Nasceu no século XX, muitos anos atrasado. Para ser ter um ideia do tempo, nos Estados Unidos da América do Norte -- o país que lidera o capitalismo contemporâneo -- a proteção ao consumidor havia começado em 1890 com a Lei Shermann, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC (a Lei nº 9078 de 1980) numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, surgia uma lei de proteção ao consumidor.
É verdade que, mesmo por lá, a consciência social e cultural da defesa do consumidor ganhou fôlego maior a partir dos anos 1960, especialmente com o surgimento das associações dos consumidores com Ralf Nader. Ou seja, o verdadeiro movimento consumerista (como se costuma chamar) começou para valer na segunda metade do século XX. Mas é importante atentarmos para essa preocupação existente já no século XIX com a questão do mercado de consumo, no país mais poderoso do mundo.
Por outro lado, como se sabe, nossa lei consumerista, apesar de tardia – e em parte por causa disso – acabou incorporando várias normas modernas protecionistas e isso gerou resultados altamente positivos a favor dos consumidores e do próprio mercado produtor.
O CDC foi um sonho que se realizou e que dá frutos diariamente. Ele gerou mais igualdade, trouxe harmonia às relações jurídicas, fez com que o resultado das transações fosse mais honesto, enfim, é um marco da evolução jurídica no país.
Naturalmente, falta mais, até porque uma única lei não poderia resolver todas as mazelas sociais perpetradas pelo capitalismo da última geração globalizada e dominada por empresários com enorme poder de fogo. Mas, os consumeristas sonham ainda mais e lutam para implementar os objetivos de conseguir obter uma sociedade mais humana e justa.
E, como disse na abertura, pensando no tema, lembrei de um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido em 2015) sobre o direito de sonhar, que ele intitula mais poeticamente de direito ao delírio. Trata-se de um lindo texto extraído de um de seus livros. Não fala só de capitalismo, mas como este, de algum modo, está no centro de quase tudo, eu o transcrevo abaixo para nosso deleite. Vale a pena lê-lo.
Eis:
O direito ao delírio1
Por Eduardo Galeano
Que tal se delirarmos por um tempinho?
Que tal se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia, para imaginar outro mundo possível?
O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões.
Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão, também, assistidas pelo televisor.
O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.
Será incorporado aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viver por viver e só. Assim como canta o pássaro, sem saber que canta, e como brinca a criança, sem saber que brinca.
Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver.
Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo; nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas.
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude e ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo.
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e, nem por falecimento nem por fortuna, se converterá o canalha em um virtuoso cavalheiro.
A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio.
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.
A educação não será o privilégio daqueles que possam pagá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem grudadinhas, costas contra costas.
A Igreja proclamará outro mandamento que Deus havia esquecido: "Amarás a natureza da qual fazes parte".
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.
Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar.
Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido quando tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importe nenhum pouquinho as fronteiras do mapa nem do tempo.
Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégio dos deuses.
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