ABC do CDC

A lei 14.010 de 10/6/20 e o art. 49 do CDC

A lei 14.010 de 10/6/20 e o art. 49 do CDC.

18/6/2020

Na semana passada, o Congresso Nacional aprovou a lei14.010 (de 10/6/2020), que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (Covid 19). Foram várias as alterações feitas, mas o que aqui me interessa comentar é uma delas, que atingiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Com efeito, dispõe o art. 8º da lei, verbis:

"Art. 8º Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos".

Vou aproveitar a oportunidade para fazer alguns comentários a respeito do art. 49 do CDC, que nem sempre é bem compreendido.

De início afirmo: se era para alterar algo no art. 49, o legislador poderia ter feito de forma definitiva, pois, como pretendo demonstrar, a regra já não poderia ser utilizada para esse tipo de serviço, dentre outros. Explico minha posição na sequência.

Nas compras feitas fora do estabelecimento comercial, os contratos firmados seguem as regras básicas estabelecidas no art. 49, que assim dispõe:

"Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados".

Essa norma foi criada para dar maior proteção aos consumidores que adquirem produtos ou serviços fora do estabelecimento comercial, sobretudo:

a) via web e/ou internet;

b) em seu domicílio, recebendo a visita do vendedor;

c) pelo telefone (vendas por telemarketing);

d) mediante correspondência (mala-direta, carta-resposta etc..);

É verdade que a norma refere apenas por telefone e em domicílio. Contudo, a citação é evidentemente exemplificativa, porquanto o texto faz uso do advérbio "especialmente". Na época da feitura da lei (1990), chamavam mais a atenção do legislador esses dois tipos, mas atualmente a web e os aplicativos tornaram-se os principais canais de vendas fora do estabelecimento comercial.

Olhando de perto, acabamos descobrindo detalhes importantes. Por exemplo, a lei parte do pressuposto de que nesse tipo de compra, o consumidor está ainda mais desprevenido e despreparado por que não tem acesso direto ao produto ou serviço. Para o legislador, o consumidor que faz a compra desse modo está mais fragilizado. No entanto, pelo que penso, não é verdade que as aquisições feitas "no" estabelecimento comercial são mais bem estudadas, refletidas e decididas do que as que são feitas "fora".

Muitas vezes se dá o contrário: os vendedores são treinados para provocar e influenciar o consumidor, estimulando-o a fazer a compra. São utilizadas várias técnicas de aproximação, sugestão e indução para a aquisição.

Nem mesmo as chamadas "compras por impulso" ocorre mais via web que na visita ao estabelecimento comercial. Quem compra por impulso, o faz por qualquer meio.

De todo modo, minha pergunta é: há casos de compras de produtos ou serviços que, por sua natureza, possam ser excluídos da hipótese de incidência do artigo 49? Penso que sim.

No início da redação do art. 49 está disposto que "o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias ...". É o chamado prazo de reflexão ou arrependimento: no período de 7 dias o consumidor que adquire produto ou serviço ou assina algum contrato pode desistir do negócio quando feito fora do estabelecimento comercial.

A ideia de um prazo de "reflexão" pressupõe, como adiantei acima, o fato de que, como o consumidor não esteve em contato real com o produto ou serviço, isto é, como ainda não "tocou" concretamente o produto ou "testou" o serviço, pode querer desistir do negócio depois que o avaliar melhor. Ou, em outros termos, a lei dá oportunidade para que o consumidor, uma vez tendo recebido o produto ou avaliado melhor o serviço, possa, no prazo de 7 dias, desistir da aquisição feita.

Muita embora seja evidente a intenção do legislador, a regra dos 7 dias para o exercício do arrependimento não funciona para o caso da compra de alguns produtos e serviços. Digo mais: se fosse mesmo para permitir prazo de reflexão, a regra deveria ser estendida para compras no próprio estabelecimento, pois como apontei, no local o consumidor está sujeito a muitas formas de sugestão.

A verdade é que, em muitas hipóteses, a aquisição feita pelo consumidor no conforto de sua casa e no tempo que ele deseje para pensar, é muito mais segura do que as feitas no local físico. Um gerente de banco tem muito mais condições de influenciar uma decisão olhando para o consumidor e com ele conversando, do que esse mesmo consumidor decidindo o que fazer diretamente em sua conta via web, onde pode obter informações mais objetivas.

Esse é exatamente o ponto: certos produtos e serviços podem ser adquiridos diretamente via web/internet sem que isso modifique os critérios de decisão ou possa alterar a qualidade do que foi adquirido. E, como já referi, do conforto do lar pode ser ainda mais seguro.

Em alguns casos, não tem sentido algum permitir o cancelamento da compra por violar o princípio da boa-fé objetiva, base das relações jurídicas de consumo, e, também, por não representar nenhum benefício nem garantia ao consumidor. Imagine-se um consumidor que, entrando em sua conta bancária pela internet faça uma aplicação em ações. Teria 7 dias para se arrepender?

E na questão das passagens aéreas? Adquirindo a passagem aérea via web/internet ou aplicativo, o consumidor está muito, mas muito mais protegido, do que se estivesse num balcão físico da companhia aérea para fazer a compra.

De forma tranquila, em casa, o consumidor tem completo conhecimento de todas as informações necessárias para a tomada de decisão. Examina as datas, horários e comodidades de cada voo existente, descobre as opções de assentos e classe, checa trechos e condições de cada decolagem, localidade, aeroportos etc. E mais: pode comparar com as ofertas das companhias aéreas concorrentes. Do conforto de seu lar, ele compara tudo isso mais preços, tarifas, taxas oferecidas pelas várias empresas. E aqui, repito, para colocar um fato notório: o consumidor não tem essas opções para decidir num estabelecimento físico da companhia aérea.

Trata-se de exemplo típico de compra mais vantajosa sendo feita fora do estabelecimento. E, claro, se é mais vantajosa, como de fato é, não há que se falar em incidência do art. 49 do CDC.

E a questão das compras de produtos para consumo imediato via web/internet/aplicativos/telefone e que a nova lei diz não sofrer a incidência do art. 49?

Como antecipei, penso que essa norma do CDC não foi feita para esse tipo de compra. De fato, se é para consumo imediato, não tem sentido falar em 7 dias de prazo para reflexão. Aliás, esse prazo de reflexão colocado na norma é a prova de que ela não foi feita para esse tipo de compra.

Nada impede, naturalmente, que o consumidor devolva o produto que recebe por inadequação ou vício. Mas, poder desistir como se a compra estivesse inserida no contexto do art, 49, penso que não.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.