Já cuidei do assunto dos transportes, nesta coluna, mais de uma vez e sempre deixando claro que se trata de serviço essencial, no qual o consumidor-usuário está em desvantagem exagerada diante do fornecedor do serviço, seja este público ou privado. E, tendo em vista essa posição de inferioridade, o usuário, que fica à mercê do prestador, pode sofrer toda sorte de abusos. Daí que, nesse setor, a intervenção do Estado diretamente ou por agências faz-se necessária para, regulamentando e controlando os serviços oferecidos, garantir os direitos dos passageiros.
Tenho abordado os serviços do transporte aéreo e verificado que a ANAC, agência que deveria cuidar do setor, tem feito muito pouco em prol dos consumidores e, pior, tem baixado medidas em detrimento de seus direitos (como ocorreu, por exemplo, com a edição da resolução 400/2016). Na órbita internacional, seria preciso que órgãos supranacionais regulamentassem os serviços, o que, infelizmente, ocorre de forma muito frágil. Nessa área, o consumidor está ao deus-dará.
Bem, se no setor aéreo é ruim, no transporte terrestre não é lá muito diferente. Anoto, antes de prosseguir, uma espécie de espanto de quem pensa no assunto. Tanto num como noutro, há serviços bem produzidos e bem oferecidos. Mas, não adianta: mais cedo ou mais tarde surgem as falhas e os abusos e fica patente o desinteresse pela manutenção da qualidade global do serviço oferecido.
Veja, caro leitor, o que aconteceu com meu amigo Outrem Ego. Ele tem parentes em Juiz de Fora e foi para lá algumas vezes, via ônibus leito, saindo de São Paulo. E elogiou o serviço mais de uma vez. Disse: "É pontual, limpo, seguro, bem feito, o atendimento é simpático, os ônibus são bem dirigidos etc.". Ele indicou o serviço. "Vale a pena!", disse.
Mas, como costumo dizer, no setor de transportes, bastou elogiar para algo sair errado. Veja o que aconteceu com ele na última viagem que fez para Juiz de Fora.
Como das outras vezes, ele ligou para o serviço de atendimento da empresa transportadora. Escolheu horário de ida e volta nos ônibus-leito, deu seu nome e RG, assim como o de sua esposa, e pagou com cartão de crédito. Tudo certinho.
Bem... Meu amigo recebeu a confirmação das passagens solicitadas via e-mail. Nesse momento, viu que seu número de RG estava errado, assim como o nome de sua esposa. Ligou, então, de volta para o serviço de atendimento. E aí começaram as decepções...
O atendente disse que ele precisaria ir à Estação Rodoviária e pessoalmente solicitar a alteração no balcão da companhia. Mas, ele não tinha tempo. Aliás, não é para economizar tempo que se fazem compras via web?
Outrem Ego argumentou: "Eu não tenho culpa alguma no episódio. Dei nossos números de RG e nossos nomes. Foi a atendente de vocês que anotou errado"!
"Sei, disse o atendente. Há uma outra alternativa: o senhor pode chegar na Rodoviária 3 horas antes e resolver o problema no guichê".
Claro que ele não topou e começou a protestar. Nisso, o atendente, disse: "Calma, meu senhor. Há uma saída... Nós cancelamos sua compra e fazemos uma nova".
Meu amigo, aliviado, respondeu: "Até que enfim. Porque você não disse logo".
Ah, como a alegria dura pouco para consumidores brasileiros!
O atendente, então revelou: "Vou cancelar. O senhor terá apenas que pagar uma multa de 5%"!
"What?", diria qualquer um. "Vocês cometem o erro e eu pago a conta?". "Sim, não há outra alternativa...", respondeu o atendente.
Meu amigo, sem saída, topou indignado e imaginando que aqueles ônibus leitos não eram tão bons quanto pareciam...
Eis o problema: abusos no varejo contra consumidores indefesos. Contra consumidores que não têm outra alternativa a não ser obedecer e/ou pagar uma multa. Normalmente, pequenos valores que não estimulam a reclamação, pois para reclamar se gasta mais tempo e mais dinheiro. No caso, a multa foi de cerca de R$9,00 por passagem.
Há solução?
A primeira, que infelizmente não se concretiza, é a dos empresários tornarem-se respeitadores dos direitos de seus usuários. Mas, neste capitalismo, onde se sabe que os clientes não têm alternativa, está difícil.
A segunda, é a atuação do Estado diretamente e/ou por intermédio de suas agências, visando a garantir os direitos dos usuários. Por aqui, nós sabemos que isso não existe.
Resta a terceira alternativa: o Poder Judiciário, mas penso que apenas por intermédio de ações coletivas nas quais se pleiteie a condenação por danos morais coletivos. Isso porque, as ações individuais são inviáveis por seus pequenos valores e resultados pífios que não assustam os infratores. Somente punições em elevados valores nas indenizações em ações coletivas podem fazer o quadro mudar. O dinheiro arrecadado cumpriria um duplo papel: o de obrigar o empresário a se emendar e a arrecadação para o Fundo da Lei de Ação Civil Pública, que poderia ajudar a controlar mais de perto o setor.