Hoje deixo de lado o Direito do Consumidor para, num curto texto, singelo, mas que entendo ser muito simbólico, cuidar do sentido de Justiça. Nos últimos dias (aliás, nos últimos meses) a Justiça tem sido o centro das atenções no Brasil. E escrevo este texto no dia de um julgamento muito importante no STF (cujo resultado não conheço, pois escrevo agora, nesta quarta-feira, dia 4 de abril, pela manhã).
Há muito o que se falar sobre a Justiça. Mas vou apenas ilustrar o assunto, citando uma decisão judicial que está no meu Manual de Filosofia do Direito1 e que, penso, serve de inspiração àqueles que resolverem refletir sobre o tema.
Trata-se de uma sentença proferida numa vara criminal de Porto Alegre que, como digo aos estudantes de Direito no livro, serve de alento de que a Justiça pode ser feita. Eis o texto:
"M.A.D.A., com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria Contravencional. O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: 'entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho...'. Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau de arara do Nordeste, o boia-fria do Sul. O filho do pobre, que é pobre, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência.
Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito.
Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da Justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso. M.A. mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba.
Carrega sacos. Trabalha 'em nome' de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas, e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de 'cheques especiais', é um burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto.
Aquele, se não tem emprego, é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso. De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já está dito) não tem amigos influentes, não há apresentação, não há padrinho, não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) do Chico Anísio. As mãos que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado a fls. 5v.) nem com a vida. E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para graúdo. E deles é o reino da terra. Marco Antonio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu. A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o Juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito.
Porto Alegre, 27 de setembro de 1999.
Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito — 5ª Vara Criminal".
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1 São Paulo; Saraiva, 7ª. Edição 2018 (Cap. VIII, item 10.2)