ABC do CDC

A questão do pagamento com cartão de crédito com preço diferenciado

O colunista aborda sobre PL que autoriza o comerciante a cobrar preços distintos para cartão de crédito e dinheiro.

21/8/2014

O consumidor entra numa loja e compra uma camisa que viu na vitrine. Na hora de pagar, é colocado um acréscimo no preço. Ele pergunta do que se trata e a vendedora diz: do ar condicionado que você respirou e curtiu".

Parece bobagem, mas já está em vigor num aeroporto da Venezuela1 e, do jeito que as coisas andam, pode desembarcar (desculpe o trocadilho) por aqui. O consumidor irá pagar não só pelo ar condicionado, mas também, quem sabe, pelos direitos autorais pagos ao Ecad pela música ambiente (o mau gosto de algumas deveria gerar descontos ao consumidor, que é obrigado a ouvi-las), pela folha de papel da nota fiscal, pela tinta da caneta da vendedora, pelo aluguel da linha usada no computador, ou um adicional pelo aumento do IPTU, etc.

E, eu não estou exagerando: sacolas plásticas nos supermercados já são cobradas (sei que há ação judicial em curso discutindo o tema); nas viagens de aviões há companhias áereas cobrando até água. A novidade da semana passada é que o plenário do Senado Federal aprovou, no último dia 6, projeto que autoriza o comerciante a cobrar preços distintos para o pagamento realizado com dinheiro ou com cartão de crédito. O projeto de Decreto Legislativo (O PDS 31/2013) susta os efeitos da resolução 34 de 5/6/1989 do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, que proíbe ao comerciante estabelecer diferença de preço de venda quando o pagamento ocorra por meio de cartão de crédito.

A pretensão dos Senhores Senadores é permitir essa antiga prática e a matéria segue agora para análise da Câmara. O incrível é que a resolução é tão antiga, que foi baixada antes mesmo da aprovação do Código de Defesa do Consumidor, que é de 11/9/1990 (entrou em vigor em 11/3/1991). São 25 anos de vigência, sem que nenhum comerciante tenha quebrado por causa disso!

Meu amigo Outrem Ego estava em pânico com a notícia. Ele disse "Há novos perigos rondando o ar. Se a moda pega, em breve, os comerciantes cobrarão preço diferenciado para pagamento com cheques, ou melhor, cheque do Bradesco com um percentual de acréscimo, do Itaú com outro, do Banco do Brasil com outro e assim por diante. Nos restaurantes, o uso dos talheres será acrescido à conta e também o serviço de pratos e copos. A ida ao banheiro será caríssima, assim como o ato de lavar as mãos (afinal, a água tem seu preço e é cada vez mais escassa). Quem sabe fique romântico os restaurantes à luz de velas, pois a energía elétrica (cobrada) é mais cara que as velas… ou não?" Neste ponto, ele ficou em dúvida sobre o que é mais caro: energia elétrica ou velas? Mas, prosseguiu: "Enfim, o céu é o limite (se bem que é bem provável que fique mais caro sentar na janela do avião, pois de lá dá para apreciar a paisagem)".

Dito isso, aproveito o tema de hoje para explicar porque não se pode exigir preço diferenciado para pagamento com cartão de crédito.

Risco e custo da atividade

Pensemos, então, nos preços. No Brasil, a maior parte deles é livre e, no comércio, o empresário pode fixá-los em quanto quiser. Para tanto, ele usará como base seu custo de produção, o que inclui os salários dos empregados, os impostos, em geral, o custo de aluguel e dos serviços necessários para o funcionamento do estabelecimento, tais como água, energia elétrica, gás etc., os juros que ele paga ao banco, quando toma empréstimo para capital de giro ou outro interesse, o preço de aquisição dos produtos quando se tratar de revenda, o preço dos insumos quando se trata de produção própria, etc. etc.

Preço é sempre à vista do comprador

Embora atualmente a inflação não seja mais tão grave como foi outrora, o consumidor brasileiro tem uma experiência bastante negativa com os aumentos em geral, fruto do longo processo inflacionário que assolou o país. Ainda existe uma memória do aumento constante de preços.

Mas, uma vez fixado o preço, este, naturalmente, tem vigência no tempo e vale para o ato da oferta e apresentação e para o momento presente em que se concretiza a venda e compra. Assim, uma vez fixados unilateralmente pelo fornecedor, eles somente existem à vista do comprador.

Não se pode confundir preço com forma de pagamento. Este pode ser a prazo, com 30, 60, 90 dias ou mais; em duas ou três parcelas iguais, financiado por instituição financeira; pode ser feito com a entrega de cheques pré-datados; mediante carnê; com cartão de crédito, de débito ou qualquer outro meio de pagamento.

A forma pode variar, o preço não. Este tem de ser o mesmo que foi estipulado à vista da compra.

Não existe preço a prazo; apenas pagamento a prazo.

Se o preço à vista é R$100,00 e o pagamento é a prazo, só é possível cobrar juros em operação sustentada por instituições financeiras (são as únicas autorizadas a cobrarem juros remuneratórios).

Se o fornecedor cobra R$ 100,00 à vista e recebe cheque pré-datado para 60 dias, não pode dizer que para 60 dias o preço é R$ 120,00. Veja-se nesse exemplo que não foi o preço que variou, uma vez que o bem não tem dois preços no ato da compra. O que o fornecedor fez foi aumentar o preço acrescentando um percentual.

Naturalmente, no desconto para pagamento à vista, ocorre o mesmo. Altera-se apenas a base e o percentual incidente: R$120,00 para pagamento com cheque pré para 60 dias e R$100,00 para pagamento no ato. É que, se for dado desconto para pagamento à vista, então o preço só pode ser o resultado líquido: eis que o preço é sempre algo do ato presente da oferta e apresentação do produto ou serviço. Logo, no pagamento parcelado aparecerá o acréscimo.

Com a forma de pagamento do cartão de crédito ou débito se dá exatamente o mesmo.

Anoto que são conhecidos os argumentos daqueles que querem cobrar preço diferenciado. O principal é o do custo para o comerciante, em função dos valores cobrados pelas administradoras de cartões e pelos bancos. Mas, como demonstrado, trata-se tão somente de custo da atividade.

Por fim, dou um outro exemplo, visando deixar esse assunto plenamente esclarecido. Pensemos no escambo (que aqui defino como troca de um produto por outro produto). Suponhamos que um consumidor pretenda comprar uma cadeira que lhe falta para um jantar que irá dar em casa. Vai à loja de produtos usados e encontra exatamente a cadeira que precisa. Daí pergunta o preço para o vendedor. "São R$ 100,00", responde este.

O consumidor, então, diz que não tem dinheiro para pagar a cadeira, mas explica que o preço é exatamente o que vale o paletó que está usando. Pergunta se o lojista aceita a troca. Ele aceita. O negócio está fechado. Preço adequado: R$ 100,00 da cadeira, igual aos R$ 100,00 do paletó. Forma de pagamento: escambo. Mas, antes de sair do estabelecimento, o consumidor propõe: "Olha, eu gostaria de usar o paletó uma última vez no jantar de amanhã, sábado, e preciso da cadeira. Posso levar a cadeira e trazer o paletó segunda-feira?".

O vendedor concorda. Logo, a compra foi feita, mas o pagamento (entrega do paletó) foi postergado para três dias depois. Isso equivale a dizer que o preço foi fixado à vista e a forma de pagamento a prazo. O preço não podia mesmo variar. O fato é que, quando o fornecedor diz que o preço varia, não é este que aumenta: o acréscimo é simples tentativa de recebimento de remuneração sobre a quantia não recebida à vista. E, repita-se, trata-se de financiamento que somente ser feito por instituição financeira.

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1Não sei se é verdade, pois na web não se pode confiar piamente. Mas, a matéria saiu. Veja-se, por exemplo.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.