Continuo a desenvolver o tema iniciado há quatro semanas a respeito das biografias. Reafirmo que pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte.
Como antecipei na semana passada, no artigo de hoje quero resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade. Minha proposta, seguindo, então, parte da doutrina, é a de que o intérprete lance mão do princípio da proporcionalidade – que é instrumental e implícito no sistema jurídico – e, a partir dele, resolva a pendenga na direção do respeito ao outro princípio, o da dignidade da pessoa humana (que é um supraprincípio constitucional). É o que apresento na sequência.
O princípio da dignidade da pessoa humana1
No atual sistema jurídico, a doutrina tem mostrado que o mais importante princípio de direito fundamental constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana.
É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia, outro direito fundamental, serve para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete.
Lembro, então, desde logo que, após a soberania e a cidadania, aparece na Constituição Federal (CF) a dignidade como fundamento da República brasileira:
"Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I — a soberania;
II — a cidadania;
III — a dignidade da pessoa humana".
Mas, o que vem a ser dignidade?
Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chegou ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica.
Com efeito, é reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da ação humana.
Não interessa aqui discutir se o ser humano é naturalmente bom ou mau. Nem se deve refletir com conceitos variáveis do decorrer da história, pois, se assim fosse, estar-se-ia permitindo toda sorte de manipulações capazes de colocar o valor superior dignidade num relativismo destrutivo de si mesmo. Foi por isso que a CF firmou a dignidade garantida por um supraprincípio; para ser absoluta, plena, não podendo sofrer arranhões nem ser vítima de argumentos que a enfraqueçam.
O que o intérprete tem de fazer é apontar o conteúdo semântico de dignidade, sem permitir que façam dele um conceito variável conforme se duvide do sentido de bem e mal ou de acordo com o momento histórico. Aliás, foi esse tipo de relativização, vigente em vários períodos da história, que serviu para justificar todo tipo de atrocidade. Em nome de um suposto bem, pessoas de várias classes e estamentos, cientistas etc. foram queimados nas fogueiras; em prol da existência de uma única religião, torturas e mais mortes foram praticadas; em nome da cor da pele ou por qualquer outro motivo, o mesmo: mais atrocidades. Esse é o relativismo histórico que se quer afastar.
Importante notar nesse aspecto que o racismo — para ficar com uma hipótese — sempre existiu e ainda continua existindo, e nem por isso o direito irá legitimá-lo. Deve, ao contrário, ser sempre uma barreira contra; uma arma para brecá-lo — quiçá eliminá-lo.
É salutar, por isso, lembrar que o ideal jurídico mundial evoluiu, e, no caso brasileiro, seu reflexo aparece no texto constitucional. Esse ideal avançou positivamente em termos de pensamento jurídico, embora mesmo nas nações mais desenvolvidas do globo haja prática de Estado, das instituições e dos grupos econômicos em sentido oposto.
Lembremos que nossos avós e bisavós — muitos vivos — fugiram de perseguição racista e da discriminação. As Américas foram assim colonizadas. Mas, na robusta comunidade europeia atual, é crescente a posição discriminatória. Nos EUA o problema contemporâneo não é diferente.
É por isso que se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marcam a experiência humana.
Assim, para definir dignidade é preciso levar em conta todas as violações que foram praticadas, para contra elas lutar, extraindo-se dessa experiência o fato de que a dignidade nasce com o indivíduo. O ser humano é digno porque é. A dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência.
Não é à toa que a Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura, que "A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público"2.
Foi, claramente, a experiência nazista que gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana.
E isso se deve dar não só no âmbito da soberania estatal, mas universalmente no concerto das nações. Tanto que, para ficar com o dado exemplar da Constituição alemã, consigne-se que a segunda parte do art. 1º daquela lei Fundamental dispõe:
"O Povo Alemão reconhece, portanto, os direitos invioláveis e inadiáveis da pessoa humana como fundamentos de qualquer comunidade humana, da paz e da Justiça no mundo"3.
Mas acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha — isto é, tem o direito de ganhar — um acréscimo. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento em que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento — isto é, sua liberdade —, sua imagem, sua intimidade, sua consciência — religiosa, científica, espiritual — etc., tudo compõe sua dignidade.
Percebe-se, então, que o termo dignidade aponta para, pelo menos, dois aspectos análogos mas distintos: aquele que é inerente à pessoa, pelo simples fato de ser, nascer pessoa humana; e outro dirigido à vida das pessoas, à possibilidade e ao direito que têm as pessoas de viver uma vida digna.
Ora, toda pessoa tem sua dignidade garantida pela norma maior, independentemente de sua posição e conduta social. Até um criminoso inconteste tem dignidade a ser preservada. Ou, como diz Ingo Wolfgang Sarlet: "todos — mesmo o maior dos criminosos — são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas — ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmas"4.
Claro que um criminoso não tem outro tipo de garantia. Por exemplo, tem seu direito à imagem limitado, podendo ser exposto para ser procurado; não goza do prestígio da boa reputação; um estuprador não tem honra etc. Mas, dignidade é-lhe inata.
Mas, infelizmente, a questão da vida digna tem outras conotações, limitada que é, de fato, na sua concretude, na realidade social. Embora a Constituição Federal estipule, inclusive, aquilo que entende como um mínimo de garantia para que a pessoa possa gozar de uma vida digna (no artigo 6º), a verdade é que muitas pessoas vivem abaixo desse mínimo. A vida digna, garantida “in abstrato” no sistema, ainda não foi incrementada historicamente para todos os seres humanos.
Outro aspecto é o que diz respeito aos enfermos, que, sendo dignos como pessoas, nem sempre levam uma vida digna, por estarem física, psíquica ou fisiologicamente lesados ou limitados, como alguém que, por exemplo, esteja em coma.
No meio social, a vida das pessoas gera uma complexidade de enfretamentos: se, de um lado, a qualidade da dignidade cresce, se amplia, se enriquece, de outro, novos problemas em termos de guarida surgem. Afinal, na medida em que o ser humano age socialmente, poderá ele próprio — tão bem protegido — violar a dignidade de outrem.
Tem-se, então, de incorporar no conceito de dignidade uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia. Ou seja, a dignidade só é garantia ilimitada se não ferir outra5.
Como resolver o conflito existente entre liberdade de expressão e respeito à vida privada e intimidade?
O princípio da dignidade da pessoa humana funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional. Na verdade, a doutrina reconhece-o como um superprincípio ou supraprincípio constitucional. Não se está a dizer que ele tem, digamos assim, uma existência hierárquica superior aos demais6, mas apenas e tão somente que na hipótese de colisão com outro princípio ou alguma norma, o intérprete deve dar prevalência a ele. Aliás, ele também atua para dirimir dúvidas na colisão de dois ou mais outros princípios e/ou colisão de direitos fundamentais. Nesse caso, o intérprete deve lançar mão de um outro princípio, o da proporcionalidade – que é instrumental e implícito no sistema jurídico – e a partir dele resolver a pendenga na direção do respeito ao supraprincípio da dignidade da pessoa humana.
A aplicação concreta do princípio da dignidade da pessoa humana: dever social
O operador do Direito, deve, então, gerir sua atuação social pautado nesse supraprincípio fundamental. O esforço interpretativo nessa direção é necessário porque sempre haverá aqueles que pretendem dizer ou supor que dignidade é uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação.
E a própria Constituição Federal, de certa forma, impõe sua implementação concreta, não só assegurando os demais direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade, à intimidade, à vida privada, à honra etc. assim como os direitos sociais previstos no art. 6º. Portanto, percebe-se que a própria Constituição está posta na direção da implementação da dignidade no meio social.
Com efeito, como é que se poderia imaginar que qualquer pessoa teria sua dignidade garantida se não lhe fossem asseguradas saúde e educação? Se não lhe fosse garantida sadia qualidade de vida, como é que se poderia afirmar sua dignidade? Ou se se permitisse violar sua intimidade, sua liberdade etc.?7
Dignidade, igualdade e proporcionalidade
Aqui, neste ponto, chamamos a atenção para um aspecto prático da implementação do princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo novamente o princípio da proporcionalidade e, por isso, iniciando este tópico pelo envolvimento desse princípio-instrumento com o da isonomia.
É verdade que o chamado princípio da proporcionalidade, que serve de instrumento para a resolução do eventual conflito entre princípios constitucionais, para a doutrina, está ligado ao princípio da igualdade. Há uma explicação para isso: é que de fato, até tempos recentes, era ele, o princípio da igualdade, o principal elemento articulador dos demais princípios, e servia para equalizá-los, harmonizando-os.
Mas, com a mudança de paradigma, que, num salto de qualidade, colocou a dignidade da pessoa humana como o valor supremo a ser respeitado, é a ela que a proporcionalidade deve estar conectada. É nela, portanto, que a proporcionalidade nasce.
Não estou, obviamente, dizendo que o princípio da proporcionalidade não tenha relação com o da isonomia, nem reduzindo a importância deste princípio. Claro que haverá relação entre ambos — tanto mais quanto, conforme adiantei, o princípio da proporcionalidade tem caráter instrumental.
Apenas digo que, como o mais importante princípio constitucional é o da dignidade humana, é ele que dá a diretriz para a harmonização dos princípios, e, via de consequência, é nela — dignidade — que a proporcionalidade se inicia de aplicar. Mas, também, quando se tratar de examinar conflitos a partir do princípio da igualdade, o da proporcionalidade estará presente.
Agora, realmente, é a dignidade que dá o parâmetro para a solução do conflito de princípios; é ela a luz de todo o ordenamento. Tanto no conflito em abstrato de princípios como no caso real, concreto, é a dignidade que dirigirá o intérprete — que terá em mãos o instrumento da proporcionalidade — para a busca da solução.
Concluindo
Assim, e para o que nos interessa neste artigo, a intimidade e a vida privada da pessoa humana deve ser entendida como complemento da dignidade; daí decorre a garantia de sua inviolabilidade. No conflito entre esses direitos fundamentais e o outro direito fundamental da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, é a dignidade que dá a direção para a solução.
Logo, a interpretação para a solução do conflito deve ser a de que não se pode, em nome da liberdade de expressão, violar-se a intimidade e a vida privada de alguém, eis que somente assim se garante o respeito à dignidade dessa pessoa.
E, para que fique clara minha posição em relação ao assunto, termino repetindo o que já disse:
Penso que, no sistema constitucional brasileiro – independentemente da legislação civil vigente –, não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos. No que diz respeito aos elementos que compõem a intimidade e a vida privada do biografado, há sim proteção e interdito constitucional para sua divulgação, garantia que decorre da interpretação conforme a Constituição Federal, que estabeleceu a dignidade da pessoa humana como um supraprincípio constitucional.
E, como as garantias fundamentais estão claramente estabelecidas, todo aquele que se sentir lesado ou que for ameaçado de lesão pode dirigir-se ao Poder Judiciário pleiteando a guarida legal preventivamente ou de forma reparadora.
Não nos esqueçamos de que é também um direito fundamental o acesso à justiça, garantido no princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, previsto no inciso XXXV do art. 5 da CF: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Repito, pois, para que não paire dúvidas: a CF é clara na garantia do acesso ao Poder Judiciário tanto para prevenção da ocorrência de lesão – isto é, para evitá-la -, como para o pleito de reparação. Assim, por exemplo, se um biógrafo violar a vida privada e/ou a intimidade de alguém, este pode pleitear indenização pelos danos causados. E, claro, pode sim ingressar com ação judicial para impedir a lesão; pode, caso queira e exatamente para impedir que a lesão ocorra, pleitear que seja proibida a circulação da obra. Algo juridicamente possível e decorrente do exercício regular do direito estabelecido. E, tudo, com base no próprio texto da Constituição Federal, independentemente do que dispõe o Código Civil.
Resumindo e terminando
Penso que no sistema constitucional brasileiro – independentemente da legislação civil vigente – não há necessidade de autorização para a realização de biografia de pessoa viva que exerça papel público, mas a apresentação dos fatos deve ser as de domínio e interesse públicos.
No que diz respeito aos elementos que compõem a intimidade e a vida privada do biografado, há sim proteção e interdito constitucional para sua divulgação, podendo a pessoa biografada pleitear judicialmente a proibição de divulgação de fato que decorra de sua vida íntima ou privada, ou a interdição da obra – para evitar a lesão que esteja para ocorrer – e/ou reparação dos danos causados – materiais e morais.
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1Extraí parte deste texto de meu livro "O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana". São Paulo: Saraiva, 3ª. edição, 2010.
2Art. 1º da Constituição Federal da Alemanha, primeira parte. O teor do texto original é o seguinte: "Art. 1º (Schutz der Menschenwurde). (1) Die Wurde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schutzen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt". Tradução do Governo alemão, publicada pelo Departamento de Imprensa e Informação do Governo Federal, Bonn. Wiesbadener Graphische Betriebe Gmbh, Wiesbaden, 1983, p. 16. O texto traduzido diz "dignidade do homem", mas o professor Nelson Nery Junior, que nos forneceu o texto, traduziu-o, também, com muita gentileza, para "dignidade da pessoa humana", que é, de fato, mais adequado.
3O teor do texto original é o seguinte: "Art. 1º ... (2) Das Deutsche Volk bekennt sich darum zu unverletzlichen und unveräuberlichen Menschenrechten als Grundlage jeder menschlichen Gemeinschaft, des Friedens und der Gerechtigkeit in der Welt". Tradução e edição conforme nota anterior.
4Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, 42.
5Há, ainda, outros aspectos que não cabe aqui analisar, como, por exemplo, o da violação da própria dignidade: pode o indivíduo violar a própria dignidade? Por exemplo, se drogando? Tentando se matar? Abandonando-se materialmente? Embebedando-se? Enfim, há algo de consciência ética, filosófica e/ou científica na garantia da própria dignidade? Para mais detalhes, indico meu livro citado na primeira nota.
6A melhor doutrina repele a existência de hierarquia ente os princípios e também entre os direitos fundamentais estabelecidos.