Meu amigo Outrem Ego tem várias teorias a respeito do funcionamento do mercado em nossa sociedade capitalista. Uma delas diz respeito ao jogo das contradições e paradoxos. "É proposital", diz ele. "Muitos dos mecanismos de comunicação implantados servem apenas para nos confundir e atordoar. Cansados, nós acabamos fazendo o que eles querem. E muitas vezes, o próprio Estado contribui para tanto".
Ele dá alguns exemplos. Veja este das pastas de dentes e seus anúncios: a Colgate diz que seu creme dental é "A marca nº 1 em recomendação dos dentistas". A Sensodyne diz que "Nove entre dez dentistas recomendam Sensodyne". A Oral B, por sua vez, para falar de sua pasta de dentes, diz que ela é "A mais usada pelos dentistas".
Ou seja, segundos esses fabricantes, os dentistas preferem Colgate, recomendam Sensodyne, mas somente usam Oral B.
Daí, com razão, indaga meu amigo: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os dentistas é que são muito atrapalhados?"
Realmente.
Examinemos, agora, um outro caso, de maior complexidade e que tem consequências mais graves: o das bebidas alcóolicas.
A lei Federal 9.294/96, como se sabe, fixou restrições ao uso e à publicidade de produtos fumígeros, bebidas alcóolicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas e em seu art. 4º definiu: "Somente será permitida a propaganda comercial de bebidas alcoólicas nas emissoras de rádio e televisão entre as vinte e uma e as seis horas"1.
Essa lei, no entanto, no parágrafo único de seu artigo 1º, definiu que, para seus efeitos, as bebidas alcoólicas são "as bebidas potáveis com teor alcoólico superior a treze graus Gay Lussac".
Ora, essa limitação deixou de fora do âmbito da lei muitos vinhos (que têm teor alcóolico abaixo dos 13 graus) e todas as cervejas, cujo teor alcóolico varia, como regra, de 2,5 e 5 graus apenas. E é aqui no caso das cervejas que morava, como mora, o perigo.
Desde que eu era menor de idade, nós sabíamos que cerveja era bebida alcóolica. Mas, o que podemos fazer se o legislador diz que não?
Claro, vai se dizer que a cerveja não é bebida alcoólica apenas para fins de publicidade na tevê. Sim, sim, bom argumento. Logo, cerveja é e também não é bebida alcóolica...
Vejamos agora a lei penal.
O art. 63, inciso I da lei das Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/1941) dispõe:
"Art. 63. Servir bebidas alcoólicas:
I – a menor de dezoito anos;
(...)
Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis".
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - lei 8.069/1990), disciplina matéria relacionada ao tema. No artigo 81, proíbe a venda de bebidas alcóolicas a menores:
"Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de:
(...)
E, no art. 243 tipifica um crime, nesses termos:
"Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave"
Embora não seja o foco deste meu artigo, anoto que, para aqueles que pensam que convivem tranquilamente esses dois diplomas legais nesse ponto, há várias decisões judiciais entendendo que servir bebida alcoólica à menor de idade é contravenção penal, não incidindo na espécie o crime do art. 243 do ECA2, pois "a distinção estabelecida no art. 81 do ECA das categorias 'bebida alcoólica' e `produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica' exclui aquela do objeto material previsto no delito disposto no art. 243 da lei 8.069 /90"3.
E mesmo deixando de lado a questão estritamente jurídica, há de se convir que, para que uma bebida alcoólica possa causar dependência física ou psíquica, não basta tomar uma lata de cerveja ou um copo de vinho. A maior parte das pessoas convivem socialmente e muito bem com esse tipo de bebida sem se tornar "dependente".
Mas, voltemos ao ponto que aqui me interessa: o da publicidade. A Ambev lançou o movimento + ID: uma campanha publicitária para estimular que os vendedores de bebidas alcoólicas peçam o documento de identidade para os consumidores. O ícone está presente em várias peças e ações do "Programa Ambev de Consumo Responsável". Como diz a empresa: "Lembrar que bebida alcoólica não é para menor de idade. Esta é a função do Movimento +ID". É importante notar que se trata de publicidade de cerveja. Aliás, a publicidade ao mesmo tempo fala da cerveja e da limitação, não deixando de fazer o anúncio da cerveja. As imagens são bonitas, as pessoas idem (aliás, jovens de bem com a vida, divertindo-se como sempre) e chega um rapaz pedindo uma cerveja, momento em que o atendente pede o documento de identidade.
Naturalmente, ninguém pode ser contra uma campanha que esclareça o que diz a lei... Quero dizer, junto com meu amigo Outrem Ego, mas o que diz mesmo a lei?
Se a própria Ambev reconhece que cerveja é bebida alcoólica, então, deveria deixar de fazer anúncios entre as 21 horas e as 6 horas da manhã. Ou não?
Esse tipo de "campanha" de engajamento tráz várias vantagens de imagem para as empresas. De um lado, dão um ar de respeito e interesse social por parte delas. De outro – como nesse caso do movimento +ID – ajudam a promover os produtos. Belas imagens que devem fazer os garotos de 17 anos ficarem torcendo para chegarem logo aos 18... Como perguntou meu amigo O. Ego: "Não seria muito mais producente e de interesse social simplesmente não fazer mais publicidade de cerveja no horário em que a maioria dos menores e adolescentes assiste à tevê?".
Realmente.
Ou como diz a psicóloga Ilana Pinsky "qualquer pessoa que já tenha assistido a alguma propaganda de álcool na televisão brasileira, verifica a agressiva utilização da sexualidade nas propagandas, especialmente no caso da cerveja. Também é fácil verificar que os (muito) jovens são certamente alvos das propagandas, com temas evidentemente voltados a eles (ex: desenhos animados, festas rave, etc.). Além disso, as indústrias têm desenvolvido produtos voltados a essa faixa etária (os produtos "ice", destilados misturados com refrigerantes ou sucos), e oferecido patrocínio a festas exclusivamente desse público-alvo (ex.: Skol Beats). Mas tão importante como as estratégias descritas acima, é a utilização do Brasil e de símbolos nacionais para a venda de álcool. Um exemplo bem recente e evidente dessa técnica ocorreu durante [a realização] Copa Mundial de Futebol, com a criação de uma tartaruga de desenho animado associada a uma marca de cerveja que foi denominada a "torcedora símbolo da seleção brasileira". Algumas marcas de cachaça também têm se utilizado de características fortemente brasileiras, como o samba, para vender seus produtos4".
Realmente.
E, a propósito. Se a indústria cervejeira quisesse mesmo proteger os jovens de suas bebidas alcoólicas não contrataria seus ídolos para promovê-las, tais como Ronaldo (Brahma), Romário (Kaiser), Junior (Antártica), Cafu (Brahma), Gerson (Vila Rica). Nem fariam propagandas sexistas utilizando mulheres como objeto na maior parte dos comerciais, o que, além de tudo, colabora para a manutenção do preconceito machista reinante na sociedade (o que também comprova, como eu já disse mais de uma vez, a falta de imaginação dos realizadores).
Engana-me que eu gosto!
Nem entrarei neste artigo na questão do álcool e direção de veículos. Certamente, para os bafômetros cerveja é sim bebida alcoólica. Então, se todo mundo sabe que para ser bebida alcoólica, basta ter algum teor alcoólico, como pode uma lei dizer que não?
Daí, se pode concluir que, segundo os fabricantes de cerveja, sua bebida é alcoólica. Porém, para a lei Federal não é. Os fabricantes querem proteger os menores, mas fazem anúncios publicitários massivos nos horários em que os menores assistem tevê.
Assim, indago, parafraseando meu amigo Outrem Ego: "Afinal, trata-se de publicidade enganosa? Ou será que eles gostam de nos confundir? Ou, então, os fabricantes de cervejas e os legisladores é que são muito atrapalhados?".
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1Referida norma decorre dos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal (CF), combinado com o § 3º, inciso II do mesmo dispositivo. Transcrevo-os a seguir:
"Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(...)
§ 3º - Compete à lei federal:
(...)
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso".