ABC do CDC

A legislação e a realidade social, econômica e humana: abstração e incompreensão

O desembargador aposentado transcreve uma carta fictícia, mas segundo ele muito real.

18/4/2013

Aqueles que estudam Direito sabem que um dos problemas da eficácia das normas jurídicas editadas pelo Estado – democrático ou não – está no divórcio entre a lei -- abstrata e geral – e a realidade social. Muitas vezes, a edição das leis segue ideais político-partidários ou filosóficos, mas os legisladores esquecem-se de investigar as condições sociais, as formas de condutas vigentes que serão atingidas pela lei, as relações existentes entre as pessoas por ela visadas, certas tradições legítimas, o costume jurídico existente, etc.

Não há, necessariamente, algum mal nisso, pois uma das funções da lei é exatamente essa de possibilitar o avanço social a partir de parâmetros políticos e filosóficos superiores. Está aí nossa Constituição Federal de 1988 para prová-lo: Muitos avanços sociais foram por ela estabelecidos, assim como ficou firmada a dignidade da pessoa humana como um super princípio e assim por diante. E, claro, nosso Código de Defesa do Consumidor é um outro bom exemplo dos avanços que o direito posto pode propiciar em termos sociais e econômicos.

No entanto, algumas vezes, o legislador, encantado com a beleza abstrata e também com a sintonia racional das palavras da lei, se esquece de investigar mais a fundo a realidade para encontrar alternativas diferentes das estabelecidas, ainda que na forma de exceção. Algumas leis são aprovadas, elevando o direito a um patamar de modernidade e, digamos assim, perfeição, enquanto a realidade subjacente, que não foi examinada em seus vários aspectos, tais como sociais, econômicos, educacionais etc., continua fluindo, até porque a vida prossegue em seu rumo natural, criando conflitos por vezes incompreensíveis para quem os sofre e também gerando injustiça.

Meu amigo, o professor Mario Frota, presidente da Associação Portuguesa de Direito de Consumo, com sede em Coimbra, Portugal, publicou recentemente, sob o título "A pós-modernidade burocrática ou lá o que isso seja...", um texto que circula pela internet, mas que, para quem não leu, vale a pena tomar conhecimento. Mário Frota informa que se trata de uma carta fictícia escrita pelo engenheiro florestal Luciano Pizzatto, especialista em Direito sócio ambiental e detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia e que foi adaptada por Barbosa Melo. 

Como diz o professor português "Nas caricaturas, um pouco da realidade...". Na coluna de hoje, pois, transcrevo o texto que envolve Direito em geral, Direito Ambiental, Direito do Consumidor etc., e a realidade social, econômica e a pessoa humana, para conhecimento e reflexão.

Ei-lo: 

"Carta do Zé Cochilo (da roça) para seu colega Luiz (da cidade)

Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão e que por isso o sapato sujava. 

Se não lembrou ainda, eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra, né Luiz?
Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente. 

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança. 

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luiz?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né), contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou.

Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana, aí não param de fazer leite. Ô, os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa ! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra, né Luiz? O candeeiro, eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca. 

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luiz, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelos fiscais  e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu levo o leite de carroça até a beira da estrada, onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou e, pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luiz, aí quando vocês sujam o rio, também pagam multa grande, né? 

Agora, pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado é com a água do rio. Aqui, agora, o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí, né?

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luiz? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo, aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foram os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.
 
Tô preocupado, Luiz, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar aí com vocês, Luiz. Mas fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem plantar, nem cuidar de galinha, nem porco, nem vaca, é só abrir a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça. 

Até mais Luiz. 

Ah, desculpe, Luiz, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio". 

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.