ABC do CDC

O Dia Mundial do Consumidor: está na hora de mudar nosso Código

Comemorando o Dia Mundial do Consumidor, o colunista faz abordagem da lei de proteção ao consumidor.

14/3/2013

Nesse dia 15 de março é comemorado o dia mundial do consumidor. Famoso porque foi nesse dia do mês de março de 1962 que o então Presidente americano John Kennedy enviou ao Congresso uma mensagem na qual defendia os direitos dos consumidores, dentre estes, o direito a segurança, informação e escolha e o direito de ser ouvido, tema que já abordei nesta coluna.

Aproveito a data para fazer uma abordagem de nossa lei de proteção ao consumidor, a lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Pretendo apresentar algumas de suas virtudes e também os defeitos que, depois de mais de 22 anos de vigência, acabaram-se verificando, o que está por exigir uma reforma.

O Código de Defesa do Consumidor – algumas virtudes

Inicio fazendo um elogio ao CDC. Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que o fez nascer, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agir como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu, e ainda serve, de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, nele inspiradas.

Não resta dúvida de que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como seu texto foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional.

O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea, o exercício da cidadania confunde-se com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc. tudo isso é regulado pela lei 8078/90.

Por isso, digo que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido. Aliás, leis que protegem o consumidor são a favor do mercado e não contra, como querem alguns. Basta olhar para a sociedade da América do Norte e verificar que a proteção lá existente ajudou em muito o crescimento do mercado.

O Código de Defesa do Consumidor – alguns defeitos

Muito bem. Acontece que nem tudo o que se esperava dele acabou acontecendo. O CDC é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ele inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de maneira a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ele fez e faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando nulas ou inválidas no todo ou em parte as cláusulas contratuais e/ou práticas comerciais que desrespeitem seus princípios e regras.

Qual o problema, então?

O principal problema está em que nesses mais de 22 anos de vigência, os elementos gerais e principiológicos não conseguiram suprimir abusos sempre praticados, além de novos que surgiram. O que era para ser uma virtude, veio, pois, mostrar-se como um defeito em várias hipóteses.

E para quem ainda tinha alguma dúvida, a ficha caiu recentemente no terrível episódio da cidade de Santa Maria. O CDC não foi capaz de proteger os consumidores, pois não tem elementos que permitam o controle real e efetivo de algumas atividades, assim como não consegue garantir a segurança dos consumidores em certos estabelecimentos. A tragédia da boate Kiss é, até agora, a maior, pior e mais triste prova desse defeito.

Tomarei, pois, esse caso traumatizante para demonstrar a necessidade de que se faça uma reforma no CDC, deixando-o menos principiológico – sem abolir, claro, os princípios que lá estão – para torná-lo mais eficaz e capaz de regular especialmente certas situações concretas muito relevantes.

Segurança abstrata, insegurança concreta

Já foi dito inúmeras vezes que o CDC contém regras que garantem os direitos fundamentais do consumidor, dentre os quais a proteção a vida, saúde e segurança, conforme pode-se ver do inciso I do artigo 6º, do "caput" do artigo 8º e do "caput" do artigo 10. Há os que defendem que isso basta para dar guarida ao consumidor. Eu também já pensei assim mas, como disse acima, tenho agora plena certeza de que é hora de mudar. Para que, realmente, nossa lei de proteção ao consumidor cumpra sua missão, é necessário que ele regre situações específicas – as mais amplas, naturalmente – conhecidas e que conseguiram ficar esses anos todos à margem da lei e passaram imunes a seus efeitos.

Repito: as normas atualmente existentes no CDC não são capazes de oferecer a segurança que se espera para muitas hipóteses e para o caso referido. Quem teria coragem de dizer para as famílias dos 241 jovens mortos na boate Kiss que no Brasil existe uma lei que garante a segurança dos frequentares de boates e clubes noturnos?

Eis a realidade: A norma, como está escrita, simplesmente não funciona para garantir a segurança dos frequentadores de boates, clubes e estabelecimentos similares.

Como eu tenho dito: É melhor um legislador que fale muito – escreva muito – mas que deixe claro o sentido da norma jurídica assim como sua incidência e eficácia, que um que fale pouco e deixe muitas dúvidas, com isso impedindo que a lei seja "de fato" aplicada.

Por isso, penso que aprimorar a lei, ampliando claramente seu âmbito de ação e especificando que certos abusos não podem ser praticados é o que a sociedade espera.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.