ABC do CDC

As filas de consumidores e os fura-filas institucionalizados

Quem já foi a parques de diversão sabe que é básico esperar nas filas dos brinquedos. Para o colunista é um problema de ordem ética.

21/2/2013

Quando o Papa Bento XVI foi pela primeira vez aos Estados Unidos, a procura por entradas para assistir às missas que ele rezaria em estádios de Nova York e Washington foi muito superior à oferta de assentos. As entradas eram gratuitas e estavam sendo distribuídas pelas dioceses e paróquias católicas. Foi inevitável o surgimento dos cambistas. Ingressos vendidos via internet chegavam a custar duzentos dólares. Os representantes da Igreja Católica protestaram contra a venda dos ingressos, sob o argumento de que não se pode pagar por um sacramento. Esse tipo de conduta desvirtuaria o espírito da oferenda, comprometendo a ordem religiosa. Não se poderia, segundo os críticos, transformar a missa e a própria presença do Papa numa mercadoria ou num serviço como outro qualquer.

Quem já foi a parques de diversão sabe que é básico esperar nas filas dos brinquedos. Em dias de muita demanda, nas atrações mais concorridas, a espera é enorme e cansativa. Mas, nos Estados Unidos, a Universal Studios Hollywood e outros parques passaram a oferecer um fura-fila. Por cerca do dobro do preço regular, eles vendem passes que levam os clientes à frente da fila. Na Universal, a oferta do fura fila tinha o preço de cento e quarenta e nove dólares de forma bem clara: "Pule para a FRENTE em todos os passeios, shows e atrações".

A questão das filas coloca, evidentemente, um problema de ordem ética. A base de sua existência é democrática e mantem o parâmetro moral e jurídico da isonomia. A fila nasceu da convivência social e de sua lógica material impositiva; ela formou-se de forma planejada ou espontânea e vingou, representando concretamente o princípio da igualdade: quem chega antes tem direito de ficar na frente. As filas são bem conhecidas nos pontos de ônibus, nas bilheterias de metrô, nos caixas dos bares nos teatros, nos supermercados, no atendimento do INSS, nos hospitais públicos e também privados, etc.

Todavia, como se sabe, para se obter concretamente a igualdade, é preciso tratar os desiguais com desigualdade, isto é, existem situações legítimas de furar a fila, tais como o caso de idosos, deficientes, pessoas com crianças de colo etc. Nesses casos não só não se está violando o princípio da igualdade como, de fato, quem está na fila não se incomoda de dar sua vez. E mesmo sem ter uma situação pessoal especial, podem acontecer algumas exceções plenamente justificáveis: Numa fila de banheiro, por exemplo, não haveria nenhum problema em alguém poder entrar antes porque que está numa situação desesperadora.

Naturalmente, há filas de vários tipos. Por isso, pergunto: Será que a questão ética que envolve cambistas e ofertas fura-fila varia de acordo com o tipo de produto ou serviço oferecido? Dependendo do que esteja sendo oferecido, é correto violar o tradicional e democrático sistema de filas? O modo de furar a fila, então, pode ser válido em alguns casos e em outros não?

É compreensível que os consumidores e as autoridades não gostem dos cambistas e queiram impedir suas ações. Os cambistas, na verdade, furam a fila antes delas surgirem, pois se antecipam aos consumidores adquirindo os ingressos – com ou sem a anuência dos promotores do evento. Mas, o mercado, aos poucos, como mostra o exemplo dos parques acima narrado, foi criando seus sistemas de fura-fila muito parecidos com o dos cambistas. Lembro-me que quando Titanic, o filme de James Cameron, estreou em São Paulo, no final dos anos noventa, formaram-se nas portas dos cinemas filas imensas. As pessoas esperavam por mais de uma sessão para poder assistir ao filme. Mas, uma operadora de cartões de crédito oferecia a seus clientes o direito de furar a fila, desde que o ingresso fosse dela adquirido (Prática que se tornou regular).

Note-se que, apesar da aparente rejeição geral sobre os modos de furar a fila, isso acontece abertamente à vista de todos em alguns casos, sem que se conheça qualquer reclamação. Por exemplo, em alguns aeroportos pelo mundo afora, existe uma entrada intitulada "green line" que permite que passageiros especiais furem a fila da inspeção de bagagem. E também nesse setor, como se sabe, nos embarques aéreos os portadores de tickets da "classe" executiva e primeira "classe" entram na frente dos demais da "classe" econômica e quem porta cartões especiais das companhias áreas também tem esse direito. Na saída, os da primeira classe e executiva também desembarcam primeiro. E, claro, eles sentam em poltronas confortáveis e espaçosas, comem deliciosas refeições regadas a bons vinhos etc. Vai se objetar que eles pagam muito mais por isso. É verdade. Mas, se é uma questão de preço apenas, retornamos aos cambistas e as pessoas que estão dispostas e podem pagar mais caro que as demais.

Pensemos em mais um exemplo, os planos de saúde: dependendo do plano, o consumidor terá um melhor ou pior atendimento. Não há igualdade de condições. O que há é distinção de preço. E quem não pode pagar, fica com o serviço do Estado, conhecida e infelizmente de pior qualidade. Numa sociedade democrática, as pessoas não deveriam estar na mesma posição de igualdade?

Imaginemos o dia das eleições: Seria possível que alguém pagasse um ingresso para votar na frente dos demais? Daria para se inventar um método que permitisse um fura fila para o voto? Talvez...

Os bancos, cada vez mais, têm salas, gerentes e caixas especiais para clientes especiais, isto é, para aqueles que rendem mais dinheiro. Os clientes fiéis de certos restaurantes, normalmente recebem tratamentos privilegiados, inclusive, conseguindo mesas quando o restaurante está lotado e há fila de espera. É compreensível que o empresário queira privilegiar seus melhores clientes. O chamado sistema de fidelização faz exatamente isso. O que ocorre é que, nos casos de venda de ingressos mais caros apenas para permitir que os abonados furem literalmente a fila, fica transparente a violação ao princípio da igualdade.

Veja-se o rodízio de carros na cidade de São Paulo. Ele apenas vale para aqueles menos endinheirados que só podem possuir um veículo. Para quem pode ter dois, três ou mais veículos, o rodízio nada significa. (A propósito, como diria meu amigo Outrem Ego, "Esse negócio do rodízio parece coisa inventada pelas indústrias de veículos, pois de uma hora para outra milhares de pessoas passaram a adquirir mais de um automóvel, aumentando consideravelmente a frota existente").

Essa questão dos fura-fila ilustra bem uma das estratégias de controle do mercado pelos fornecedores: quando o produto ou o serviço é escasso e a demanda é alta (nos casos de shows, jogos e demais espetáculos) acontecem duas coisas: o preço sobe (ou nasce alto), mas como não há como fazê-lo ir além de um certo patamar (sob pena de aniquilamento de demanda), então surge a segunda: os consumidores são lançados à própria sorte e uns contra os outros. Naturalmente, essa situação gera a formação de filas. Quanto maior a demanda (e a ansiedade, a expectativa, ou o fascínio pelos artistas, por exemplo) mais cedo a fila começa. Não é incomum, que adolescentes acampem dois ou três dias antes de um evento na porta de estádios para poder comprar ingressos de seus ídolos musicais. São filas incríveis, longas, anti-higiênicas etc., mas digamos assim, formam-se por "livre e espontânea vontade (!)". Infelizmente, no Brasil, às vezes, esse tipo de fila se forma com mais de um dia de antecedência para que as pessoas possam ser atendidas por um médico do serviço público de saúde. Há também filas desse tipo para assistir jogos de futebol e outras atrações e de vários outros temas: concursos públicos, empregos privados, vestibulares, etc.

Com eu disse, o empresário sabe desse interesse – e, claro, o fomenta. Daí, quando não pode mais subir o preço, começa a tirar vantagem da luta existente entre os consumidores. Estes, abandonados a si mesmos, lutam pelo direito de adquirir ingressos. Às vezes, como se fosse a aquisição da passagem para o último voo de saída do planeta que está em vias de explodir. Chama a atenção o fato de que os cambistas e demais tipos de atravessadores apresentaram os elementos para que os fornecedores pudessem imitá-los.

Assim, esse conhecido passa-moleque vai vingando como estratégia de faturamento, fundada em larga medida na complacência dos consumidores que vão aceitando o fato como natural. Afinal, o ato de furar a fila vai se tornando banal e assim consegue passar despercebido.

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1Conf. Michael J. Sandel, "O que o dinheiro não compra". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.40.

2Ibidem, p.22.

3Ibidem, p. 23

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.