O Big Brother nas escolas?
*Este artigo foi escrito por Rizzatto Nunes em conjunto com a pedagoga Claudia Calmon
Em 1946, George Orwell dizia: "Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar...". E ele que, infelizmente, faleceu em 1950 aos 46 anos, vítima de tuberculose, desenvolveu com maestria excepcional uma experiência estética que foi capaz de proclamar uma série de denúncias envolvendo a natureza humana, o Estado e a sociedade.
"O Grande Irmão está de olho em você" é o conhecido slogan do famoso romance "1984". Não preciso chover no molhado de apontar o lado visionário desse livro, um clássico moderno atual e aterrorizante que, escrito entre 1943 e 1948 e lançado em 1949, nos legou uma série de avisos e modos de conduta e também apontou elementos de tecnologia que foram incrementados mesmo antes da data prevista no título. Dentre as várias situações assustadoras apresentadas, a mais famosa e que se tornou popular por um motivo mais ou menos torpe é a do Big Brother.
Como se sabe, na obra de Orwell, as pessoas eram vigiadas 24 horas por dia por um aparelho intitulado teletela, que funcionava simultaneamente como televisão e câmera. A vigia que se fazia sobre as pessoas era de tamanha força que se controlavam não só as falas, mas também as expressões faciais, de tal modo que, se aparecesse na tela o Grande Irmão e a pessoa não demonstrasse seu amor por ele e aquiescência com suas ideias, era recolhida, torturada e eliminada.
O herói do livro, Winston, que guardava um pouco de consciência das coisas que ocorriam, para poder pensar livremente e esconder a expressão de seu próprio rosto enquanto assim o fazia, descobriu um canto em sua casa não captado pela teletela. Era um espaço neutro em que ele podia permanecer longe da vigilância. Ali, na sombra da vigia, ele podia pensar e escrever num livro de páginas amareladas.
Muito bem. Recentemente, a colocação de câmeras de vídeo nas salas de aula de um colégio em São Paulo gerou, e ainda gera, uma discussão sobre a legitimidade de sua existência. A pergunta que se faz é: pode mesmo uma escola colocar câmeras de tevê para vigiar o comportamento do aluno em sala de aula? Os que se posicionam a favor dizem que, com isso, os alunos acabam se comportando de maneira mais adequada, respeitando as regras de convivência vigentes na escola. Os críticos, de outro lado, dizem que esse não é o melhor método de incorporação de normas de conduta.
Penso que os críticos têm razão. A se continuar a implantação desse modelo de vigília em salas de aula, como se os alunos estivessem num presídio, talvez se consiga, de fato, um comportamento objetivamente adequado às normas, mas se coloque a perder o necessário processo de formação e interiorização delas. É preciso que o aluno não só cumpra as determinações, mas, especialmente, internalize-as, conferindo-lhes legitimidade, pois só assim conseguirão comportar-se de forma adequada não só na escola como em outros ambientes sociais. De nada adianta construir-se uma relação na qual se busque meramente um comportamento passageiro – no período das aulas – como se vivêssemos numa sociedade de total vigilância. Aliás, até mesmo em 1984 o Grande Irmão e seus asseclas queriam não só o comportamento exterior, mas também a internalização da obediência. Tanto que a pessoa flagrada em delito, antes de ser eliminada, era torturada até o momento em que interiorizava o comando, dizendo que aceitava as imposições do sistema. Depois disso, era eliminada. Será que restará aos alunos procurar um local onde as câmeras não os alcancem para poderem manifestar seus pensamentos, sua concordância ou discordância com as regras e os sistemas? Será que esses alunos terão que, de fato, pensar livremente apenas nos banheiros e cantos obscuros da escola? (é isso que se chama educação?). A autoridade do professor em sala de aula (e também a do diretor do estabelecimento) será trocada por câmeras de segurança?
Essa questão das câmeras de vigilância há de ser bem analisada, inclusive pelos pais. Algumas perguntas podem e devem ser feitas. Será que a instalação do disposto não está a denunciar algo maior? Como, por exemplo, a perda da autoridade do professor e do próprio estabelecimento de ensino?
Ademais, no caso desse colégio de São Paulo há ainda uma questão jurídica relevante. Examinando-se o projeto pedagógico publicado na sua página da internet, vê-se um descumprimento da proposta. Vejamos alguns trechos:
"Projeto Pedagógico - ... orienta-se por um fazer cotidiano que objetiva a aquisição de conhecimentos e competências permeados pelo diálogo, respeito à diversidade , atitude crítica e edificada em princípios éticos e de solidariedade.
Fundamenta-se no binômio indissociável ACOLHER e EDUCAR, que: revela uma concepção de criança e de adolescente como sujeito competente e de direitos; considera sua dimensão intelectual, social, emocional, expressiva, cultural, interacional; respeita as características de cada faixa etária em direção à sua formação integral em que o sentir, pensar e agir estão intrinsecamente interligados.
A ação educacional que viabiliza essa proposta se dá por meio de projetos relacionados à valorização da vida... à convivência social, aos trabalhos em equipe...
Esses procedimentos visam ao desenvolvimento de competências e habilidades que promovem reflexão crítica e construção de autonomia intelectual e moral, o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de tomar decisões conscientes e responsáveis frente à realidade social.
Nesse processo de inserção do aluno na vida em sociedade, nossa escola organiza suas ações em função de três valores centrais, que determinam a maior parte das decisões tomadas, sejam funcionais ou pedagógicas: COMPETÊNCIA - capacidade de mobilizar saberes para agir em situações concretas. ÉTICA – construção do pensamento criterioso, comprometido com o respeito mútuo, com a reciprocidade , com autonomia moral e intelectual. SOLIDARIEDADE – estabelecimento de convívio social que envolva produzir, dividir e aprender com os outros; compromisso com a causa humana, percebendo-se como agente de transformação da realidade e de si mesmo".
Há mais no projeto, mas é o que basta para verificar que a proposta pedagógica – boa em essência – não tem qualquer relação com a inserção de câmeras de vigilância em sala de aula. Parece mesmo que a direção perdeu a rédea da administração da escola e dos alunos. Realmente, é uma contradição. Para educar é preciso sabedoria e autoridade. Ambas geram legitimidade. O aluno obedece porque compreende a razão da ordem e, ao internalizá-la, acaba por legitimar a autoridade do professor e da própria escola. Esse é um tipo de poder legítimo, que é exercido para gerar consciência e conhecimento.
Com câmeras de vigilância, instaura-se uma espécie de força que se limita a controlar a ação no espaço físico. Perde-se, pois, a oportunidade de educar verdadeiramente. No caso, o próprio projeto prevê a autonomia dos alunos, o preparo para a vida social fora da escola e a responsabilidade. Mas que autonomia terão os alunos com câmeras olhando para suas faces e seus atos?
A autonomia não surge num sistema de imposição de ordem e de obediência vigiada. Para sua aquisição, deve-se permitir e propiciar a discussão constante de princípios e regras pelos próprios alunos entre si e com a participação dos professores, para que, de fato, elas sejam internalizadas e se tornem legítimas. Não se trata de imposição, mas de aquisição negociada, dialogada, problematizada no contexto da aprendizagem.
Os alunos devem ser convidados a pensar juntos sobre o que é construir uma sociedade com respeito, o que é que de ser considerado bom e correto para a comunidade escolar, como se deve dar o relacionamento entre os colegas, o que deve ser considerado saudável, justo, etc. Uma escola tem que estar preparada para formar cidadãos responsáveis e conscientes de seus direitos e deveres. Não pode se contentar em gerar robôs, que sejam incapazes de expressar o que pensam, cujos movimentos do corpo são controlados e que entram e saem das salas de aulas com sorrisos amarelos nos seus rostos vigiados.