ABC do CDC

Por que os consumidores são tão previsíveis?

Por que os consumidores são tão previsíveis ? O colunista responde a questão.

13/9/2012

Nesse último fim de semana, meu amigo Outrem Ego fez uma indagação a respeito do enorme congestionamento nas estradas paulistas (e também em várias outras pelo país afora). Disse ele: "Era um fim de semana longo, emendado pelo feriado. A previsão do tempo apontava sol sem chuvas. Não era óbvio que haveria congestionamento? Por que é que mesmo assim as pessoas, nessa condição de viajantes ou turistas, enfiaram-se na estrada para fazer, em seis horas, um trajeto de uma? Aliás, como sempre acontece, todo ano, todo feriado emendado, em todas as festas de fim de ano etc. As pessoas são mesmo tão previsíveis?".

Um caminho para tentar responder essa questão é o do exame do comportamento humano nos papéis sociais desempenhados. O consumidor, por exemplo, é um papel social com características próprias que, inclusive, no Brasil, foi elevado à condição de figura constitucional (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXII). O consumidor como papel social – aliás, como também outros papéis sociais – apresenta-se com diversas ramificações e especialidades, tais como o usuário de cartão de crédito, o correntista, o turista, o espectador, o internauta etc., cada qual com especificidades próprias. Nessa linha de reflexão, servir-me-ei de elementos da Sociologia do Direito que, penso, pode nos ajudar na busca.

Com efeito, a Sociologia Jurídica desenvolveu o conceito de papel social . O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social1. O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo, latentemente, ações que ele pode realizar.

Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo oferece sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida. O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas, dá-se o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis.

A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se uma seleção e reduz-se a complexidade – escolheu algo entre muitos2. Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, delegado etc. Escolheu ser médico; não será odontólogo, nem advogado ou engenheiro etc.

Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está – isso não importa para o papel social – pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou "sem querer") nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem, ainda, nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada. Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente – "ele queria fazer Medicina, mas não conseguia passar" – ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de medicina, de engenharia, de administração de empresas etc., como exposto acima.

Os papéis sociais foram criando-se por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais.

Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que, para o indivíduo, as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações. Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais – ações e comportamentos – preenchidos temporalmente por indivíduos. E é muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente "crie" um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais pré-existentes entre os demais papéis sociais.

Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte, o que traz vantagem e desvantagem.

A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade.

A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe "por detrás" do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido.

O indivíduo real – psíquica e fisicamente considerado – é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e, por vezes, esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais.

Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando é o suficiente3.

Como elemento de comprovação do que estou apresentando, isto é, o de que o papel social exerce forte influência no comportamento das pessoas, mostro na sequência como os agentes financeiros organizaram-se para conhecer de antemão o comportamento de seus futuros tomadores de empréstimos.

É pela análise dos papéis sociais desempenhados pelas pessoas e a catalogação das ações e comportamentos neles desenvolvidos, que as pesquisas sobre expectativas de ações futuras têm sido feitas. E o desenvolvimento desse setor é cada vez mais preciso. Os bancos, já na metade do século XX, implantaram o cálculo do risco dos empréstimos a serem concedidos pela avaliação dos consumidores em seus diversos segmentos de papéis. Eles criaram o credit score, que nada mais é do que um método de concessão de pontos para certas características das pessoas nos papéis em que estão investidas.

Funciona assim: são colocadas notas negativas e positivas numa escala crescente que valoriza posições e ações: a idade, a profissão, o estado civil, o tempo no emprego, o salário, a condição de ser funcionário privado ou público, as posses (propriedade de imóveis, móveis etc.), a existência de filhos e a idade deles etc. – um longo etc. e bem detalhado. Com isso, pode-se fixar um score, isto é, uma nota pelo risco que o indivíduo pode gerar, bastando, para tanto, que a ficha cadastral esteja preenchida. Nem é preciso conversar com o consumidor: é só dar notas para seus dados pessoais. Esse tipo de análise de crédito foi o que propiciou o desenvolvido dos chamados créditos de massa, créditos pré-aprovados e os cartões de crédito.

Se um consumidor é aposentado do serviço público, tem bom salário – sem risco de não receber no fim do mês – é proprietário de imóveis, automóveis, seus filhos já são independentes etc. pode receber boa nota e, logo, ele implica baixo risco. Se se trata de um engenheiro recém-formado, que acaba de arrumar um emprego num pequeno escritório, é casado há dois anos, sua esposa está grávida, não possui patrimônio, a não ser um imóvel financiado por 30 anos, então, recebe nota baixa, pois oferece alto risco.

Esses exemplos simples, mas reais, e as características de cada proponente variam ao infinito, mas quanto mais se avalia os atos e as circunstâncias de cada um, mais se pode acertar no resultado do futuro adimplente ou inadimplente. Os bancos vêm fazendo isso há dezenas de anos e formaram um enorme arquivo com esses dados, o que permite uma muito boa avalição de seus clientes. O risco, naturalmente, também está atrelado ao valor do crédito ou empréstimo, ao tempo de relação existente com o proponente e o banco, aos empréstimos anteriormente tomados e pagos ou não por ele e outros elementos particulares e específicos do proponente, que são levados em consideração. Mas, o importante para nossa análise é a avaliação do comportamento objetivo da posição cadastral – via papéis – para demonstrar como se dá o exame da previsibilidade comportamental.

Olhando-se as ações e comportamentos por essa via, é de se indagar se, então, o futuro pode ser previsto. A resposta é sim, mas apenas nas circunstâncias e nos percentuais objetivamente avaliados em relação a certos e escolhidos comportamentos, como o exemplo dos turistas de fim de semana, dos proponentes de cartões de crédito e empréstimos e outros tantos interesses difusos dos consumidores, dos votos nas eleições em geral etc. O futuro é previsível, portanto, no coletivo, a partir do exame dos papéis sociais.

No individual, no particular de cada pessoa, o futuro continua imprevisível porque, evidentemente, qualquer pessoa pode escolher não se comportar como os demais estão se comportando ou irão se comportar: alguém que não apresenta risco para um banco pode, por exemplo, furar o sistema deixando de pagar; alguém que sempre pega a estrada nos fins de semana prolongados pode resolver não viajar em algum deles etc. São exceções que podem também ser consideradas estatisticamente para melhorar o cálculo e que, quando envolve grande quantidade de pessoas agindo dentro do padrão, ainda permite a previsibilidade, pois funciona como mero desvio.

Realmente, do ponto de vista da liberdade, é um pouco assustador que se possa antecipadamente saber como é que as pessoas irão se comportar. É mesmo. Parece estranho, mas o cálculo acaba dando certo, porque desconsidera a pessoa real, a pessoa que existe, com nome, documento e endereço. O cálculo leva em consideração o papel social e não a pessoa. Mas, é exatamente esse método que "salva a liberdade". É que, como visto acima, a possível ação livre dá-se no plano do indivíduo e não do papel. Ou, em outras palavras, não se consegue antecipadamente descobrir "quem" irá se tornar inadimplente ou mesmo adimplente. Não se pode, de antemão, adivinhar qual será a pessoa real, com nome, CPF e RG que, afinal, acabará atrasando o pagamento de sua dívida ou que manterá as prestações em dia. O cálculo dá certo exatamente porque desconsidera a pessoa real; esta não importa. O que vale é o papel que ela desempenha, o que conta são as características dos papéis sociais em que ela está inserida. Por isso, ainda dá para se falar em liberdade individual: alguém pode não corresponder às expectativas previstas para o comportamento no papel social e examinadas para a feitura do cálculo.

Por outro lado, para quem faz o cálculo visando estabelecer controle sobre um certo grupo de pessoas ou querendo antecipar resultados em função das ações dessas pessoas, isso não importa. Basta desconsiderar os eventuais deslizes de alguns componentes – algumas pessoas – do grupo estudado. É assim que as coisas se dão: no papel social, existe uma muito grande possibilidade de que as pessoas se comportem da maneira como se espera que elas se comportem, de modo que, sim, pode-se antever suas ações e comportamentos.

Poder-se-ia objetar que os consumidores-turistas de fim de semana não têm alternativas de lazer, além de colocar o pé na estrada. É verdade. Mas, lembre-se que para o método que permite a previsão dos acontecimentos, isso não é importante; os motivos da ação ou comportamento não são relevantes. O que vale é o comportamento em si e objetivamente considerado. E este é previsível. Assim, considerando-se as características desse consumidor-turista de fim de semana, é possível antever seu comportamento para os próximos feriados, período de festas de fim de ano etc.

Respondendo, então, a meu amigo Outrem Ego, posso dizer que no próximo feriado emendado dar-se-á exatamente o mesmo, pois, no papel social de turista de fim de semana, grande parte das pessoas se comportam como se espera que elas se comportem. Isso não é um mal, mas, apenas um dado objetivo do comportamento humano. Ademais, essa possível previsibilidade tem seu lado bom. Ela permite que as empresas que administram as estradas planejem as viagens, que a polícia rodoviária faça o mesmo, que os comerciantes das cidades visitadas aumentem seus estoques de produtos e se preparem para oferecer serviços para a multidão que chegará etc.

Goste-se ou não, é assim que as coisas são. De fato, essa possibilidade de previsão é quase enfadonha. É ela que explica em parte o sucesso de campanhas publicitárias, das promoções, dos concursos, dos feirões de imóveis etc. Já se sabe que o consumidor irá comportar-se de certo modo. Somente muita educação e tomada de consciência do jogo capitalista e social permitiria um mudança nesses padrões repetitivos e previsíveis.

Contrariando o maravilhoso Nelson Rodrigues que dizia que "no Brasil até o passado é imprevisível", a ciência demonstra como fazer cálculos capazes de prever comportamentos. Quem duvida, que aguarde o próximo feriadão e observe os congestionamentos nas estradas.

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1Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, que produziu vários textos com base na Teoria dos Sistemas de Talcott Parsons. Cito especificamente "Legitimação pelo procedimento", Brasília: UNB, 1980, especialmente ps. 71 e segs.

2A escolha gera um alívio para o indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui.

3Para mais dados, consulte-se o livro citado de Niklas Luhmann.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.