Em função do artigo da semana passada (clique aqui), no qual abordei o abuso do corte de água do condômino inadimplente feito pelo condomínio, resolvi publicar este para demonstrar porque as próprias companhias prestadoras dos serviços essenciais de água, esgoto e de energia elétrica também não podem fazê-lo, a não ser em circunstâncias muito especiais.
O Código de Defesa do Consumidor regrou no art. 22 especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir "teorias" para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC. (Mas, mesmo com sua expressa redação, alguns prestadores de serviços públicos lutaram na Justiça "fundamentados" no argumento de que não estariam submetidos às regras da lei 8.078/90)1.
Serviço público prestado direta ou indiretamente
Diz a norma: "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento", vale dizer, toda e qualquer empresa pública ou privada que por via de contratação com a Administração Pública forneça serviços públicos, assim como, também, as autarquias, fundações e sociedades de economia mista. O que caracteriza a pessoa jurídica responsável na relação jurídica de consumo estabelecida é o serviço público que ela está oferecendo e/ou prestando.
No mesmo artigo a lei estabelece a obrigatoriedade de que os serviços prestados sejam "adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". Examinemos o sentido desses termos.
Eficiência
Em primeiro lugar diga-se que essa disposição da norma decorre do princípio constitucional estampado no caput do art. 37. É o chamado princípio da eficiência2. É verdade que tal princípio somente passou a integrar explicitamente o corpo constitucional com a edição da Emenda 19, de 4 de junho de 1998, data posterior à edição da lei 8.078/90. Mas a emenda citada apenas tornou explícito o princípio outrora implícito em nosso sistema constitucional, como explicam os professores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior:
"O princípio da eficiência tem partes com as normas de 'boa administração', indicando que a Administração Pública, em todos os seus setores, deve concretizar atividade administrativa predisposta à extração do maior número possível de efeitos positivos ao administrado. Deve sopesar relação de custo-benefício, buscar a otimização de recursos, em suma, tem por obrigação dotar da maior eficácia possível todas as ações do Estado"3.
Hely Lopes Meirelles disciplina que a eficiência é um dever imposto a todo e qualquer agente público no sentido de que ele realize suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. Diz o administrativista:
"É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros"4.
É fato que a lei designa outros adjetivos aos serviços prestados, além do relativo à eficiência: fala em adequado, seguro e contínuo (este último para os essenciais, que ainda comentarei).
Ora, adjetivos expõem a qualidade de alguma coisa, no caso o serviço público. Então, quando o princípio constitucional do art. 37 impõe que a Administração Pública forneça serviços eficientes, está especificando sua qualidade. Ou, em outros termos, o tão falado conceito de qualidade, do ponto de vista dos serviços públicos, está marcado pelo parâmetro constitucional da eficiência.
E essa eficiência tem, conforme vimos, ontologicamente a função de determinar que os serviços públicos ofereçam o "maior número possível de efeitos positivos" para o administrado.
Isso significa que não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. E o significado de eficiência remete ao resultado: é eficiente aquilo que funciona.
A eficiência é um plus necessário da adequação. O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente. É isso que o princípio constitucional pretende.
Assim, pode-se concluir com uma classificação das qualidades dos serviços públicos, nos quais o gênero é a eficiência, tudo o mais decorrendo dessa característica principal. Logo, adequação, segurança e continuidade (no caso dos serviços essenciais) são características ligadas à necessária eficiência dos serviços públicos.
Realmente, o serviço público só é eficiente se for adequado (p. ex., coleta de lixo seletiva, quando o consumidor tem como separar por pacotes o tipo de material a ser jogado fora), se for seguro (p. ex., transporte de passageiros em veículos controlados, inspecionados, com todos os itens mecânicos, elétricos, etc. checados: freios, válvulas, combustível, etc.), e, ainda, se for contínuo (p. ex., a energia elétrica sem cessação de fornecimento, água e esgoto da mesma forma, gás, etc.).
Para uma classificação dos serviços públicos pelo aspecto da qualidade regulados pelo CDC, ter-se-ia, então, de dizer que no gênero eficiência estão os tipos adequado, seguro e contínuo.
Pode acontecer de o serviço ser adequado, mas não ser seguro. Ou ser seguro e descontínuo. Ou ser inadequado apesar de contínuo etc. No primeiro caso, cite-se como exemplo o serviço de gás encanado sem controle de inspeção das tubulações e/ou válvulas. No segundo cite-se o serviço de fornecimento de energia elétrica que é interrompido. No terceiro aponte-se o fornecimento contínuo de água contendo bactérias.
Em todos esses casos há vício do serviço e, dependendo do dano sofrido pelo consumidor, haverá também defeito. Tudo nos exatos termos do estabelecido nas regras dos arts. 14 e 20 do CDC.
E, claro, como os serviços públicos hão de ser eficientes, as variáveis reais possíveis da junção dos tipos não são apenas as dicotômicas apresentadas (adequado-inseguro; seguro-descontínuo; inadequado-contínuo, etc.), mas também podem ocorrer pela conexão das três características: adequado-inseguro-descontínuo; inadequado-seguro-contínuo; adequado-seguro-descontínuo, etc.
Foi isso o que ficou estabelecido na lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que disciplinou o regime de concessão e permissão dos serviços públicos, como decorrência do estabelecido no art. 175 da Constituição Federal.
É que a Carta Magna dispõe que a lei deve regulamentar a obrigação da manutenção do serviço público de forma adequada. Leia-se a citada norma constitucional:
"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I — o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II — os direitos dos usuários;
III — política tarifária;
IV — a obrigação de manter serviço adequado".
Os §§ 1º e 2º do art. 6º da lei 8.987/95, então, dispõem:
"Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço".
Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes, adequados, seguros e contínuos.
Serviço essencial contínuo
Prosseguindo no exame, chega-se ao aspecto da essencialidade do serviço que, na determinação da norma do caput art. 22, tem de ser contínuo.
Há que distinguir dois aspectos: o que se pode entender por essencial e o que pretende a norma quando designa que esse serviço essencial tem de ser contínuo.
Serviço essencial
Começo pelo sentido de "essencial". Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia, etc.
Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos?
Para solucionar o problema, devem-se apontar dois aspectos:
a) o caráter não essencial de alguns serviços;
b) o aspecto de urgência.
Existem determinados serviços, entre os quais aponto aqueles de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que:
a) servem para que a máquina estatal funcione;
b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (p. ex., certidões).
Se se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito longínqua e indiretamente poder-se-ia fazê-lo.
Claro que existirão até mesmo emissões de documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando isso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso ilegalmente. É o caso concreto, então, nessas hipóteses especiais, que designará a essencialidade do serviço requerido.
O outro aspecto, sim, é relevante. Há no serviço considerado essencial uma perspectiva real e concreta de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma.
O serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado. E no sistema jurídico brasileiro há lei ordinária que define exatamente esse serviço público essencial e urgente.
Trata-se da Lei de Greve — lei 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no art. 10, que dispõe, verbis:
"Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:
I — tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II — assistência médica e hospitalar;
III —distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV— funerários;
V — transporte coletivo;
VI — captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII — telecomunicações;
VIII — guarda, uso e controle de susbstâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX — processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X — controle de tráfego aéreo;
XI — compensação bancária".
Dessa forma, nenhum desses serviços pode ser interrompido. O CDC é claro, taxativo e não abre exceções: os serviços essenciais são contínuos. E diga-se em reforço que essa garantia decorre do texto constitucional.
Com efeito, como se sabe, a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc.
Ora, vê-se aí a inteligência da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos.
Interrupção
A lei 8.987, citada acima, prevê a possibilidade de interrupção do serviço público em situação de emergência por motivo de "ordem técnica ou de segurança das instalações" (art. 6º, § 3º, I).
Em primeiro lugar, essa regra excepcional apenas constata que certas situações de fato podem ocorrer (mas não deviam: razões de ordem técnica e segurança das instalações que gerem a necessidade de interrupção), e tais situações, ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do serviço público, aliás em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação. Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação. (Lembro que qualquer dano — material ou moral — causado pela interrupção dá direito a indenização, uma vez que a responsabilidade do prestador do serviço é objetiva, e a mera constatação da possibilidade de descontinuidade feita pelo art. 6º, § 3º, I, da lei 8.987 não tem o condão de elidir a responsabilidade instituída no CDC).
Inadimplência do consumidor
Alguns operadores do Direito, a meu ver de forma equivocada, têm-se manifestado no sentido contrário à norma (e mesmo contra sua clara letra expressa), admitindo que o prestador do serviço público corte o fornecimento do serviço essencial em caso de inadimplemento.
Antes de apresentar os argumentos pró e contra a descontinuidade em caso de inadimplemento, há que se abordar, como preliminar, a hipótese inserta na supracitada lei 8.987.
Isso porque aquele mesmo § 3º do art. 6º dispõe não se caracterizar como descontínuo o serviço quando ocorrer "inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade".
E essa disposição tem servido de apoio àqueles que, erradamente, admitem o corte do fornecimento em caso de não pagamento da tarifa.
Teria sido melhor a lei 8.987 não ter tratado do assunto, porque:
a) seria inconstitucional, como veremos, a lei ordinária admitir o corte por mera inadimplência;
b) para dizer o que disse, bastavam as disposições já vigentes da lei 8.078, que dão cabal solução à questão.
Mas, como a norma existe, cuido dela, pois, antes de prosseguir.
A redação do inciso II do § 3º do art. 6º fala em inadimplemento do usuário, "considerando o interesse da coletividade". É essa parte da proposição normativa que salva o texto.
O interesse da coletividade que seja capaz de permitir a interrupção do serviço público essencial — garantido constitucionalmente — só pode algum tipo de fraude praticada pelo usuário e que, por isso, possa causar algum prejuízo à coletividade.
Conforme mostrarei mais à frente, admitir-se-á o corte do fornecimento do serviço apenas após autorização judicial, se demonstrado no feito que o consumidor inadimplente, podendo pagar a conta — isto é, tendo condições econômico-financeiras para isso —, não o faz. Afora essa hipótese e dentro dessa condição — autorização judicial —, o serviço não pode ser interrompido.
Na sequência deixarei tal circunstância mais esclarecida.
O fato é que aqueles que pensam que se pode efetuar o corte confundem o direito de crédito que tem o fornecedor com o direito que ele não tem de interromper a prestação do serviço.
Os partidários dessa posição alegam que o Poder Público não pode ser compelido a prestar serviço público ininterrupto se não for feito o pagamento da tarifa ou taxa.
Mas isso também não corresponde à verdade:
a) O principal argumento contra essa "tese" da possibilidade do corte do fornecimento dos serviços essenciais no caso de inadimplemento é não só o do expresso texto legal, mas simplesmente o da lógica mais simplória.
Pergunta-se: para que então o legislador escreveu que os serviços essenciais são contínuos?
Se fosse para permitir que eles pudessem ser interrompidos em caso de inadimplemento, então não precisaria ter sido escrito. Bastava a redação do art. 22 terminar no adjetivo "seguro".
Em sendo assim, o prestador do serviço público essencial poderia cortar o seu fornecimento, desde que existisse previsão contratual para tanto. Porém, a lei declara expressamente: serviço essencial é contínuo!
b) Por outro lado, se o legislador escreveu apenas para dizer que os serviços públicos são essenciais e contínuos, isto foi em vão, porque não é o art. 22 que faz esse tipo de prestação ser essencial, mas sua própria natureza.
c) É de lembrar-se que a determinação de garantia da dignidade, vida sadia, meio ambiente equilibrado, etc. é constitucional, como visto. É direito inexpugnável a favor do cidadão-consumidor.
d) Existem, além disso, outros argumentos jurídicos menos relevantes, mas que também são aplicáveis ao caso:
d.1) Há milhares de cidadãos isentos de pagamentos de tributos e taxas sem que isso implique a descontinuidade dos serviços ou qualquer problema para a administração do Estado;
d.2) Um bem maior como a vida, a saúde e a dignidade não pode ser sacrificado em função do direito de crédito (um bem menor);
d.3) É plenamente aceitável que seja fornecido ao cidadão um serviço público gratuito. Aliás, em última instância é essa a função do Estado, que deve distribuir serviços de qualidade e gratuitos a partir dos tributos arrecadados. Não há nenhum impedimento lógico para que certos grupos sociais de menor poder aquisitivo recebam, portanto, alguns serviços públicos sem ter de pagar por eles. Repito: já é assim com tributos como, por exemplo, o IPTU;
d.4) Aliás, se quem mais pode mais paga tributo, não há qualquer inconveniente em que aquele que não pode pagar pelo serviço público o receba gratuitamente, como já ocorre no atendimento hospitalar, na segurança pública, na educação, etc.
É preciso concretizar num exemplo a intenção da lei, para se ficar plenamente convencido da justiça e constitucionalidade de sua determinação.
Tomemos o caso do serviço de energia elétrica ou de água e esgoto. Suponhamos a família composta por João da Silva, sua esposa Maria e seus dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos de idade. Digamos que ele, trabalhador da indústria metalúrgica há muitos anos, perca o emprego, pois a indústria empregadora, num corte de gastos, mandou embora dezenas de trabalhadores5.
João da Silva mora com a família numa pequena casa financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação. Juntou, anos a fio, uma reserva mensal para poder dar entrada no seu sonho (e necessidade) maior: o imóvel. Mas, depois que o adquiriu, com o nascimento do seu segundo filho, o arrocho salarial e o aumento das despesas, não conseguiu mais guardar um "tostão" sequer, como se diz.
Pois bem. Despedido, passou a engrossar a longa fila dos desempregados e a viver da mirrada quantia do seguro-desemprego. Os depósitos que tinha, retirados do Fundo de Garantia, esgotaram-se em 3 meses, já que a maior parte foi usada para complementar a parcela de entrada da residência.
Com dificuldades para comprar comida para seus filhos, João deixou de pagar as contas de água e energia elétrica. Ou, em outros termos, os serviços públicos essenciais de água e esgoto e de energia elétrica fornecidos na casa de João e que são medidos e cobrados todo mês — e que, diga-se, ele sempre pagou — não foram quitados no vencimento.
Agora, o que irá acontecer?
Para os adeptos da posição de que pode haver suspensão da entrega dos serviços essenciais em caso de inadimplemento, João da Silva, sua esposa e filhos pequenos estarão em grande dificuldade, e a violação a seus direitos constitucionais será flagrante.
Se os prestadores dos serviços públicos cortarem o fornecimento de energia elétrica, bem como água e esgoto, além das perdas imediatas (comida se estragando na geladeira, riscos de acidente noturno no escuro com as crianças, etc.), os direitos básicos daquelas pessoas passam a não ser supridos. Com isso, surge um problema de saúde pública.
As chances de João e sua esposa e, especialmente, de seus filhos adoecerem aumentam enormemente. E, quanto mais tempo passar, pior será. Diríamos até que, depois de algum tempo, o problema de saúde inexoravelmente ocorrerá.
Nem estou citando o sofrimento (o dano moral) de João e seus familiares, porque ele é evidente.
Doente aquela família, há riscos para os demais cidadãos que com eles convivem e, assim, para toda a comunidade. (Paradoxalmente, o Estado estará punindo essas pessoas causando-lhe dor e sofrimento, fazendo-as adoecer e, depois, deverá delas cuidar nos serviços de saúde!)
É isso o que essa posição doutrinária pretende?
Garantia constitucional
A Carta Constitucional proíbe terminantemente que isso ocorra:
a) O meio ambiente no qual vive o cidadão — sua residência, seu local de trabalho, sua cidade etc. — deve ser equilibrado e sadio.
É verdade que é difícil obter um adequado meio ambiente no que respeita ao ar atmosférico numa grande cidade. Mas não é numa casa. E esse direito já está garantido com plena eficácia.
b) É desse meio ambiente que decorre, em larga medida, a saúde da pessoa e consequentemente sua vida sadia, tudo garantido constitucionalmente.
c) Se para a manutenção desse meio ambiente e da saúde e vida sadia do indivíduo têm de ser fornecidos serviços públicos essenciais, eles só podem ser ininterruptos.
d) O corte do serviço gera uma violação direta ao direito do cidadão e indiretamente à própria sociedade.
e) Aliás, numa análise global da possível economia do sistema de administração da justiça distributiva, é evidente que é mais custoso para o Estado ter de amparar a família que adoeceu por falta do fornecimento dos serviços essenciais do que fornecê-lo gratuitamente, conforme acima anotei (afora o problema de as doenças se espalharem6).
É um trabalho simples e barato de prevenção da saúde.
Preço
Além disso tudo e para concluir, falo um pouco do preço do serviço público.
A remuneração do serviço público, adotando o regime tarifário, tem a mesma concepção de preço, mas não se confunde com o preço privado, cuja amplitude nasce num contexto de fixação pelo fornecedor, dentro dos parâmetros e com os limites constitucionais.
Ora, o serviço público é bem indisponível, sendo prestado pelo Estado e seus agentes por força de lei. Tais agentes não podem dispor do serviço público: são obrigados a prestá-lo para atingir o interesse público irrenunciável.
Assim, ainda que remunerado por meio de preço (tarifa), é claro que este há de cercar-se de características especiais, já que nesta seara não há que se falar em negociação ou decisão entre as partes contratantes, nem em disponibilidade do objeto do negócio.
Não se pode, por isso, confundir o preço que o consumidor paga ao adquirir roupas numa loja com o preço que o usuário de um serviço público, essencial e indisponível paga a uma concessionária.
Ademais, mesmo na esfera privada há produtos e serviços necessários como, p. ex., o medicamento produzido por uma única empresa que pode curar o câncer, o atendimento do socorro médico, etc. Nesses casos, o consumidor também não tem escolha. Não pode decidir por adquirir ou não: é prisioneiro da compra.
Nos serviços públicos a necessidade é de sua própria natureza. De um lado o comando constitucional determina sua prestação; de outro, o usuário não tem possibilidade de escolher a negociação: é obrigado a usufruir do serviço público, tanto mais em se tratando do serviço essencial.
Logo, não são o preço e seu pagamento que determinam a prestação do serviço público, mas a lei.
Nessa linha de entendimento já expunha Geraldo Ataliba: "Se o serviço é público, deve ser desempenhado por força de lei, seu único móvel. O pagamento (...) é-lhe logicamente posterior: é mera consequência; não é essencial à relação de prestação-uso do serviço"7.
Destarte, com ou sem pagamento do preço (tarifa), o Estado não pode eximir-se de prestar o serviço público, como determina a lei. Claro que esse quadro não se altera quando os serviços são prestados mediante concessão ou permissão.
E, para concluir minhas observações, mais dois pontos.
O primeiro, já adiantado, refere-se à constatação de que existem serviços públicos fornecidos independentemente do pagamento. Por exemplo, o de coleta de lixo. Quer o cidadão pague quer não as taxas cobradas, o lixo é (tem de ser) recolhido. Pelo simples motivo de que isso é essencial, contínuo e fundamental para a manutenção de um meio ambiente saudável.
O segundo é relativo ao direito de crédito do prestador do serviço público.
Não se pretende simplesmente tirar-lhe o direito de receber o quantum relativo ao fornecimento do serviço. Ele pode, é claro, receber seu crédito. Mas este, para ser cobrado, está também submetido às regras instituídas no CDC.
A cobrança não pode ser abusiva (art. 42, c/c o art. 71). E, uma ameaça ilegal de cobrança é a do corte do serviço essencial. E pior: o corte efetivo com o intuito de forçar o consumidor inadimplente ao pagamento é uma concreta violação.
A meu ver só há um caminho para o prestador do serviço essencial suspender o fornecimento desse serviço: é ele propor ação judicial para cobrar seu crédito e nessa ação comprovar que o consumidor está agindo de má-fé ao não pagar as contas. Pode haver, inclusive, pedido de antecipação de tutela ou pedido de liminar em cautelar, se o fornecedor-credor puder demonstrar a má-fé do consumidor.
Naturalmente, no caso de João da Silva e sua família, o corte dos serviços não poderá ser feito. Mas, no de alguém que, não pagando as contas de água, adquire um automóvel zero-quilômetro, é fácil demonstrar sua má intenção.
Com isso, salva-se o sistema jurídico, respeita-se o consumidor e garante-se o direito do credor. A justiça plena do sistema constitucional se realiza. E nem se argumente que tal circunstância seria uma violação ao direito do credor, porquanto, como aqui já referi inúmeras vezes, receber ou não crédito decorre do risco de sua atividade. E lembre-se que, atualmente, no sistema jurídico brasileiro, um credor como, por exemplo, um banco pode ficar impossibilitado de receber seu crédito pela via judicial se o devedor residir no único imóvel que lhe pertence, impenhorável por força da lei 8.009, que instituiu o chamado bem de família legal, e não tiver mais bens penhoráveis. Nem por isso se pode falar em injustiça, uma vez que aquela lei é constitucional e decorre do direito de moradia, assegurado na Carta Magna, que também garante, como já vimos, a vida sadia, o meio ambiente equilibrado e, assim, a dignidade da pessoa humana.
__________
1Para ficar só com um exemplo, veja-se o caso da decisão da 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo no agravo de instrumento interposto pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo — Sabesp. Nas razões do recurso do feito, que envolve a discussão a respeito de valores cobrados pelo fornecimento de água e esgoto (que o consumidor alega foram cobrados exorbitantemente), a empresa fornecedora fundamenta sua resignação "na não subordinação da relação jurídica subjacente àquela legislação especial (o CDC)". O Tribunal, de maneira acertada, rejeitou a resistência da Sabesp: "indiscutível que a situação versada, mesmo envolvendo prestação de serviços públicos, se insere no conceito de relação jurídica de consumo. Resulta evidente subordinar-se ela, portanto, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor" AI 181.264-1/0, rel. Des. J. Roberto Bedran, j. 9-2-1993, v. u., RTJE 132/94.
2Para mais dados, consultar meu Curso de Direito do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed. 2011, Cap. 3, item 3.11.
3Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 235
4Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Saraiva, 13ª. ed, p. 90.
5Realço que esse exemplo inventado é absolutamente (e infelizmente) real no País, e, aliás, os casos que se multiplicam são muito piores do que esse aqui relatado.
6Isso sem falar em outros problemas que o corte de serviços públicos acarreta, como o da segurança, por exemplo.
7Hipótese de incidência tributária, 5. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 1992, p. 146.