Por conta de uma entrevista que dei recentemente1, acabei descobrindo algo que me deixou estarrecido: só na cidade de São Paulo, dezenas de condomínios estão cortando a água de condôminos que atrasam o pagamento das despesas condominiais. E o fazem com a desculpa de que o tema foi decidido em "assembleia de condôminos". Muito embora o assunto não envolva Direito do Consumidor, vou aqui abordá-lo porque indiretamente tem com ele relação. Vejamos os pontos.
Como é sabido, não há relação de consumo entre o condômino e o condomínio no que respeita a cobrança e pagamento das despesas de condomínio, de modo que as regras do CDC não incidem na relação jurídica existente. No entanto, também como é de conhecimento geral dos operadores do Direito, quando o intérprete descobre a existência de lacunas no ordenamento jurídico no que diz respeito a certo caso examinado, ele pode e até deve preencher a ausência encontrada pelo método da integração. Isso pode ser feito lançando-se mão da analogia e dos princípios gerais do Direito2.
Ora, na hipótese que envolve os métodos de cobrança utilizados pelos condomínios e seus administradores, há uma lacuna – isto é, não há lei que a regule. Logo, deve-se procurar no sistema jurídico uma norma que se aplique a fato ou comportamento semelhante. Para a hipótese, sem nenhuma dificuldade, colmata-se a lacuna utilizando-se a analogia pela norma mais próxima e adequada do sistema que é a do "caput" do art. 42 do CDC. E esta é clara na proibição dos abusos. Leia-se:
"Art. 42.. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça".
É importante que não percamos de vista, para o exame do presente assunto, o elemento histórico e que serve de modelo educacional no envolver de cobrança de dívidas. Quando a lei 8.078/90 foi editada, isso significou um marco histórico civilizacional no Brasil em muitos dos fatos que ali foram regulados, certas práticas abolidas e proibidas, etc. Uma das novidades incrementadas foi exatamente a do impedimento dos abusos nas cobranças. Com o advento do CDC, o devedor voltou a receber o respeito que merecia e merece como cidadão, que tem logo no início da Carta Magna a garantia de que sua dignidade não pode ser ultrajada. A sociedade passou a perceber que o devedor é aquele que, por uma série de motivos, não consegue pagar sua dívida. E que não pagar sua dívida civil ou comercial não é crime: a lei quis expungir da sociedade o estigma de mau pagador gravado, injustamente, em muitas pessoas (Eu sei, claro – como todos sabem – que há maus pagadores e que deixam de pagar suas dívidas de má-fé. Mas, é certamente a minoria; a lei quis proteger a maioria).
Num regime capitalista consumista ao extremo como o nosso, em que o sistema de marketing, de forma incessante, induz o consumidor a adquirir produtos e serviços o tempo todo e com uma larga oferta de crédito e formas de pagamento, ninguém está livre de mais cedo ou mais tarde ficar em dificuldades para pagar suas contas. E, ser devedor, aliás, não coloca o consumidor à margem do sistema, pois os instrumentos de cobrança são vários, legítimos e bem regulados: a cobrança há de ser feita de acordo com as regras estabelecidas na lei, mas sem abusos.
Mas, veja só: mesmo cobrado sem abusos, a situação do devedor é de alta desvantagem: ele pode ser protestado, pode ter seu nome lançado nos serviços de proteção ao crédito (ou seja, negativado), o que já o limita nas ações sociais – ele, nessa condição, fica reduzido em suas possibilidades de compras; ademais, ele pode ser cobrado judicialmente e ter seus bens penhorados; pode perdê-los em hasta pública. Isso tudo já não basta?
Para a Lei sim. O credor pode exercer plenamente seu direito de cobrar, mas não pode constranger, humilhar, maltratar o devedor. Se o dono da padaria tem um cheque que voltou sem fundos, pode protestá-lo e executar o emitente, mas não pode estampar o cheque na boca do caixa, como era usual antigamente.
A boa notícia: deu certo! Após e entrada em vigor do CDC, os credores melhoraram seus sistemas de cobrança, deixando de humilhar e constranger seus clientes-devedores e, nem por isso, ficaram sem receber aquilo a que tinham direito. Naturalmente, os que continuaram e ainda continuam com a prática das cobranças abusivas têm sido punidos pelo Poder Judiciário, condenados a pagar indenizações por danos morais.
Infelizmente, como disse no início desse texto, aquilo que havia sido banido das práticas comerciais pela porta de frente, voltou de forma sórdida e sorrateira pelas portas dos fundos da assembleia condominial. Como disse meu amigo Outrem Ego sobre o tema: "Não sei de quem foi a ideia, mas é incrível como alguém sempre tem uma que possa causar danos e violar a dignidade da pessoa humana e é de admirar que encontre seguidores".
Como eu mesmo disse na entrevista a que me referi: "Cortar a água de alguém é absolutamente constrangedor. Viola a dignidade dessa pessoa. O condomínio pode ir à Justiça para cobrar, penhorar os bens dele para pagar a dívida, mas ele tem que ser respeitado. Daqui a pouco vão impedir o condômino de subir de elevador, vão impedir que ele entre no prédio... O porteiro não vai abrir a porta? É uma coisa absurda. A gente vê por aí como é abusivo mesmo. Viver em sociedade é isso. Os outros condôminos podem entender o drama de alguém que não tem condições de pagar".
Agora acrescento. Proibir uma pessoa de tomar banho, de fazer suas necessidades, de lavar o alimento que irá ingerir, de lavar seus pratos, etc. é medonho: uma violação ao sistema jurídico democrático estabelecido no Brasil. Um ataque à dignidade da pessoa humana, que tem consequências morais, psicológicas e também materiais. A pessoa ficará doente e, não só sua saúde será atingida, mas também sua imagem, sua alma. Quem assistiu ao Programa da Rede Globo viu o exemplo da matéria levada ao ar: desempregado, um cabeleireiro, pai de duas crianças, atrasou o condomínio e ficou mais de três meses sem água em casa. Mal falado pelos vizinhos, mergulhou em uma crise pessoal e quase se separou da mulher. Veja o absurdo: um casal e duas crianças ficaram três meses sem água em casa. Um escárnio com essas pessoas. Abertamente praticado.
E mais: um ato que pode ser enquadrado no tipo penal do art. 345 do Código Penal 3 (exercício arbitrário das próprias razões), eis que a ameaça de corte ou o corte efetuado tem como finalidade suprimir a instância judicial de cobrança. (Não cito o art. 71 do CDC4, que tipifica o crime de cobrança abusiva, porque, como se sabe, não se pode fazer analogia para aplicar norma penal in mallam partem).
Mais ainda: no Estado de São Paulo (não sei quanto aos demais) com base na lei Estadual 13.160 de 21/7/2008 o condomínio pode protestar o devedor – que só por essa via já será negativado no serviço de proteção ao crédito. E, mesmo antes do protesto ou depois dele, pode ingressar com ação judicial de cobrança, nunca se esquecendo que o devedor não pode alegar impenhorabilidade de bem de família (conforme art. 3º, IV da lei 8.009/90 e pacífico entendimento da jurisprudência nesse sentido).
Repito, para concluir, que o caso mostra um retrocesso histórico enorme, um retorno a uma espécie de barbárie que havia sido extirpada das práticas nacionais. Ela é ilegal e serve para deseducar, fazendo as pessoas acreditarem que violar o outro é exercício de direito, quando está longe de sê-lo. Evidentemente, nem precisaria dizê-lo, o fato só de o ato ser autorizado por muitos (a assembleia) não muda em nada sua natureza abusiva; apenas demonstra desconhecimento e despreparo de quem vota.
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1Fantástico, rede Globo, domingo, dia 12/2/2012
2O costume jurídico, embora referido no art. 4º da lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942, antes denominada Lei de Introdução ao Código Civil) como norma utilizável para o preenchimento da lacuna, na verdade é norma típica e, portanto, ou é própria e aplicável ao caso ou é elemento analógico. Para mais dados sobre esse tema, consultar meu Manual de Introdução ao Estudo do Direito, 11ª. edição, 2012, São Paulo: Saraiva, págs. Cap. 6, subitem 6.7.3.
3Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
4Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa.