ABC do CDC

A boa-fé objetiva como paradigma da conduta na sociedade capitalista contemporânea

19/5/2011

Na segunda-feira p.p., após consertar o texto deste artigo, li neste querido e potente órgão informativo, o Migalhas, uma nota sobre decisão do Colégio Recursal de Santos (do TJ/SP) que deu provimento ao recurso de uma empresa de varejo via internet, revertendo decisão que a condenava a entregar um fogão pelo preço irrisório de R$ 2,10, cancelando também a condenação no pagamento de indenização por danos morais. (clique aqui)

Segundo consta, uma consumidora acessou o site administrado pela empresa e viu um anúncio de um fogão de marca conhecida vendido pelo preço de apenas R$ 2,10. Ela, então, aproveitou a situação e efetivou a compra do eletrodoméstico, via transação eletrônica, pagando R$ 2,10 mais o custo do frete de R$ 84,56. Alguns dias depois, recebeu um comunicado da empresa falando do erro inserto no anúncio: o preço do fogão era, na realidade, R$ 2.099,00. A empresa também informou que o pagamento seria ressarcido de imediato, com juros e correção monetária.

No entanto, a compradora se recusou a receber o estorno e ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com danos morais, para obrigar a empresa a entregar o fogão pelo preço pago, mas afinal acabou perdendo a demanda, aliás, muito bem decidida pelo Colégio Recursal.

Boa coincidência, eis que o caso é típico de violação ao princípio da boa-fé objetiva previsto no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e demonstra como a simples e direta aplicação desse princípio pode resolver alguns casos judiciais. A propósito, anoto que a violação ao princípio pode ser feita tanto por fornecedores (mais comum, fruto da mentalidade atrasada do enganar para ganhar) como por consumidores (como no caso do erro evidente do anúncio, a partir do qual a consumidora quis "levar vantagem", como se diz)1.

No presente artigo demonstrarei o papel desempenhado pela boa-fé objetiva na construção do sistema jurídico e também na aplicação efetiva dos princípios e normas jurídicas na sociedade capitalista contemporânea.

1. O comportamento humano previsto na norma

A hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre uma maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e logo sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do "status quo"; os que vêem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas.

Realmente, são várias as teorias que pretendem dar conta do fenômeno produzido no seio social enquanto ação humana ou comportamento humano na sua correlação com as normas em geral e jurídica em particular. Pois bem. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como "topói", isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto2. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário3.

2. O modelo da boa-fé objetiva

Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez, conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional.

Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema. Dentre as várias alternativas, chamamos atenção aqui para "standarts", tais como "fato notório", "regras ordinárias da experiência", "homem comum", "pensamento médio", "razoabilidade", "parcimônia", "equilíbrio", "justiça" (no sentido de equilíbrio), "bom senso", "senso comum", etc.

É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento, porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas aqui como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe, intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o argumento estandartizado, porque reconhece nele, de forma inconsciente – intuitiva – um foro de legitimidade, eis que produzidos na realidade como um fato inexorável.

Falemos, pois, de um "topos" fundamental que, inserido no contexto linguístico dos operadores do Direito, estudiosos da sociedade capitalista contemporânea, acabou, no Brasil, por ser erigido a princípio na lei 8.078/90, foi adotado pelo Novo Código Civil e vem sendo reconhecido como elemento da base do próprio sistema jurídico constitucional. Referimo-nos ao, já agora, conhecido "standart" da boa-fé objetiva.

É necessário deixar-se claro que, quando se fala em boa-fé objetiva tem-se que afastar o conteúdo da conhecida boa-fé subjetiva. Esta diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença sobre determinada situação pela qual o detentor do direito acredita em sua legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Lembremos os exemplos encontrados no direito civil pátrio, tais como o do art. 1.5614, que cuida dos efeitos do casamento putativo, dos arts. 1.2015 e 1.2026, que regulam a posse de boa-fé, do art. 8797, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel indevidamente recebido, etc.

Sendo assim, a boa-fé subjetiva admite sua oposta: a má-fé subjetiva. Vale dizer, é possível verificar-se determinadas situações em que a pessoa age de modo subjetivamente mal intencionada, exatamente visando iludir a outra parte que, com ela, se relaciona. Fala-se, assim, em má-fé no sentido subjetivo ou o dolo de violar o direito da outra pessoa envolvida.

Destarte, pode-se, então, constatar que a boa-fé subjetiva e a má-fé subjetiva são elementos que compõem a conduta da pessoa e que podem ser verificadas, mas com toda sorte de dificuldade, posto que demanda uma apuração interna (subjetiva) da pessoa que pratica o ato (tanto a lesada como a causadora da lesão). Mas com a boa-fé objetiva é diferente: ela independe de constatação ou apuração do aspecto subjetivo (ignorância ou intenção), vez que erigida à verdadeira fórmula de conduta é capaz de, por si só, apontar o caminho para solução da pendência.

A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva dos contratantes.

Em decorrência disso, pode-se, grosso modo, definir a boa-fé objetiva como sendo uma regra de conduta a ser observada pelas partes envolvidas numa relação jurídica. Essa regra de conduta é composta basicamente pelo dever fundamental de agir em conformidade com os parâmetros de lealdade e honestidade.

E quando se trata de relação jurídica de consumo, esses parâmetros de lealdade e honestidade visam também o estabelecimento do equilíbrio entre as partes, mas não o econômico, como pretendem alguns e sim o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desiquilíbrio de forças.

Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando o interesse das partes. Lembro que o novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta aos contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 4228 e no art. 113, que cuida da interpretação dos negócios jurídicos9.

Além disso, é importante apontar que a boa-fé objetiva é também fundamento de todo sistema jurídico, de modo que ela pode e deve ser observada em todo tipo de relação existente. É por ela que se estabelece um equilíbrio esperado para a relação, qualquer que seja esta. Este equilíbrio – tipicamente caracterizado com um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto –, é verdade, não se apresenta como uma espécie de tipo ideal ou posição abstrata, mas, ao contrário, deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica (contratos, atos, práticas, etc. e como demonstra o caso da compra do fogão narrado no início deste texto).

3. A operação feita pelo intérprete

Examine-se, pois, o funcionamento da boa-fé objetiva: o intérprete lança dela mão, utilizando-a como um modelo, um "standart" (um "topos") a ser adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora, devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante, etc.) devem-na respeitar.

A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se amoldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude cooperativa que seja capaz que realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida.

Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o mMagistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado para que aquele caso concreto pudesse estar adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse "standart", verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas.

4. Conclusão

É por tudo isso que se afirma que a boa-fé objetiva é o atual paradigma da conduta na sociedade capitalista contemporânea.

___________

1E, não é a primeira vez que ocorre. A hipótese de anúncio com preço impresso incorretamente com valor irrisório é típico de erro na oferta, conforme já tive, inclusive, oportunidade de relatar no meu Comentários ao CDC (São Paulo: Saraiva, 6ª. edição, 2011, págs. 456 e segs.).

2Ver a respeito da Tópica, Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasília, UNB, 1980, "passim".

3Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr ao apresentar o funcionamento da tópica material: A tópica material, diz ele, proporciona as partes, “um repertório de 'pontos de vista' que elas podem assumir (ou criar), no intuito de persuadir(ou dissuadir) o receptor da sua ação lingüística. Os partícipes do discurso judicial, ao desejar influenciar o decurso do diálogo-contra(persuasivo), precisam produzir uma impressão convincente e confiante; as suas ações lingüísticas devem ser dignas de crédito” (Direito, retórica e comunicação, São Paulo: Saraiva, 1973, p. 87).

4"Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.

§ 1 º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.

§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão."

5"Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção."

6"Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente."

7"Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.

Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o terceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação."

8"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé".

9"Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Para acompanhar seu conteúdo nas redes sociais: Instagram: @rizzattonunes, YouTube: @RizzattoNunes-2024, e TikTok: @rizzattonunes4.