ABC do CDC

É o aparelho de telefonia celular um produto essencial?

10/3/2011

Antes de mais nada, quero elogiar o trabalho desenvolvido pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça (DPDC), que muito tem feito em defesa do consumidor. E, o motivo deste meu artigo está relacionado à decisão do DPDC em definir como bem essencial os aparelhos de telefonia celular. Essa decisão acabou sendo questionada pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica e, por isso, ao final do ano passado gerou certo debate a respeito. Penso que o caso é simples e neste artigo eu apenas resumirei o que já escrevi sobre o assunto mais de uma vez, nos últimos dez anos em meus artigos e livros.

O Serviço Público de telefonia

Diz o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que os "órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos".

Anoto o dado importante para a análise, o de que a lei liga o aspecto da essencialidade do serviço com o aspecto de sua continuidade, isto é, sua não interrupção. Para deixar claro o significado disso, distingo os dois aspectos para a compreensão do que se pode entender por essencial e também contínuo.

Serviço essencial

É pela natureza dos serviços prestados, primeiramente, que se pode definir de sua essencialidade ou não. Assim, pode-se dizer que, em geral, o serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde, etc. Nesse sentido, é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia, etc. (privatizados ou não).

Mas, então, é de perguntar: se todo serviço público é essencial, por que é que a norma estipulou que somente nos essenciais eles são contínuos? Para solucionar o problema, aponto dois aspectos:

a) o caráter não essencial de alguns serviços;

b) o aspecto de urgência.

Existem determinados serviços como, por exemplo, os de ordem burocrática, que, de per si, não se revestem de essencialidade. São serviços auxiliares que: a) servem para que a máquina estatal funcione; b) fornecem documentos solicitados pelo administrado (por exemplo, certidões).

Se fosse levantar algum caráter de essencialidade nesses serviços, só muito longínqua e indiretamente poder-se-ia fazê-lo. Claro que, existirão até mesmo documentos cujo serviço de expedição se reveste de essencialidade, e não estou olvidando disso. Por exemplo, o pedido de certidão para obter a soltura de alguém preso. Nessas hipóteses especiais, é o caso concreto que designará a essencialidade do serviço requerido.

O outro ponto é também relevante. Há no serviço considerado essencial um aspecto real e concreto de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua prestação. O serviço de fornecimento de água para uma residência não habitada não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento de água para uma família é essencial e absolutamente urgente, uma vez que as pessoas precisam de água para sobreviver. Essa é a preocupação da norma.

Para ficarmos com exemplos no assunto deste artigo, lembro que ninguém pode duvidar da essencialidade e urgência do serviço de telefonia celular para a pessoa que tenha seu veículo quebrado à noite num lugar ermo; ou que esteja acompanhado de alguém que sofra um ataque cardíaco; ou – para ficarmos num exemplo infelizmente corriqueiro – que tenha sido sequestrada e colocada no porta malas de seu veículo, etc. Atualmente, a linha telefônica celular é mesmo necessária e essencial.

Logo, vê-se que o serviço público essencial revestido, também, do caráter de urgente não pode ser descontinuado.

Assim, como disse, num primeiro momento, esse caráter decorre da natureza do próprio serviço e/ou da situação concretamente existente. Mas, no caso brasileiro, a lei Federal também define o que vem a ser serviço essencial. Trata-se da lei de Greve – lei n. 7.783, de 28 de junho de 1989. Como essa norma obriga os sindicatos, trabalhadores e empregadores a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, acabou definindo o que entende por essencial. A regra está no inciso VII do art. 10, que dispõe, verbis:

"Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:

I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;

II – assistência médica e hospitalar;

III – distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;

IV – funerários;

V – transporte coletivo;

VI – captação e tratamento de esgoto e lixo;

VII – telecomunicações:

VIII – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;

IX – processamento de dados ligados a serviços essenciais;

X – controle de tráfego aéreo;

XI – compensação bancária".

Portanto, quer pela natureza do serviço prestado, quer pela definição legal, pode-se com certeza afirmar que o serviço de telefonia celular é essencial e, também, contínuo, não podendo ser interrompido. Aliás, realce-se que o CDC é claro nesse sentido, algo que, no Brasil, decorre diretamente do texto constitucional. Isto porque, a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da proteção à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º), etc.

Ora, decorre daí a inteligência do texto do art. 22 da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio ambiente equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essenciais urgentes não forem contínuos.

Vejamos, agora, a questão do produto que envolve a prestação do serviço. Ou, perguntando de outro modo para o assunto deste artigo: Se a prestação do serviço de telefonia é essencial, o aparelho celular (produto) que permite sua utilização é ou não também essencial? Respondo na sequência.

O serviço público é apenas serviço ou também produto?

Em relação aos serviços em geral há os puros (prestados por meio da própria atividade) e os que são prestados com produtos que compõem o próprio serviço (a tinta do serviço de pintura, a cola da instalação do carpete, etc.). É importante frisar esse aspecto do serviço que se faz acompanhar do produto, para evitar dúvidas quanto ao serviço público. Este, ainda que entregue algum produto, como por exemplo a água ou a eletricidade, continua sendo caracterizado como serviço.

Para elucidar a questão aproveitemos uma objeção feita por ocasião do famoso black-out ocorrido no país em abril de 1999. A questão colocada foi a de que água é produto, eletricidade também. Então, a distribuidora de energia elétrica, como revendedora do produto "energia", não pode ser responsabilizada pelo acidente de consumo que vitimou centenas de pessoas, em função do black-out. A abordagem dizia que, sendo ela distribuidora (comerciante) do produto, simplesmente não fez a sua entrega, porque não a recebeu das linhas de transmissão.

Mas o argumento é falacioso e desconhece a essência do significado do serviço. Como dissemos, há serviços que se prestam acompanhados de produtos. E os serviços públicos de fornecimento de água, energia elétrica, gás encanado, etc. são típicos nesse caso.

Na realidade é o "fornecimento" o serviço prestado. A montagem de toda a rede de transmissão, encanamento, saneamento, etc. é feita para que o serviço seja prestado, isto é, para que o "fornecimento" de água, energia elétrica, gás, seja realizado. É, repita-se, serviço essencial, que, por suas características, entrega produto, o que não o desnatura como serviço.

Assim, na hipótese de qualquer black-out (algo quem infelizmente, tem ocorrido com muita regularidade no país), a distribuidora responde pelo enquadramento no art. 14 do CDC (defeito do serviço prestado) ou no art. 20 (vício) e em todas as demais regras do sistema legal que cuidam dos serviços.

Desse modo, não pode haver qualquer dúvida de que, o produto uma vez integrado ao serviço essencial que é prestado reveste-se também do mesmo caráter de essencialidade. Veja-se o simples exemplo de uma torneira, quando se trata da prestação do serviço de água. Sem ela, o serviço jamais seria prestado. Ela é tão essencial quanto o próprio serviço. Da mesma forma, evidentemente, o aparelho celular (produto) é necessário para que o serviço essencial de telefonia seja prestado. Assim, esse produto se reveste do mesmo caráter de essencialidade. É, portanto, como dito, uma falácia dizer que o serviço de telefonia é essencial, mas o produto necessário para sua recepção não é. Como é que o consumidor teria acesso ao serviço, se não fosse pelo aparelho? Ou da água ou gás se não fosse pelos canos e torneiras?

Por tudo o que expus, penso, pois, que estava, como está, certo o DPDC em definir o aparelho de telefonia celular como bem essencial. E, como tal, também como estipulado no CDC (art. 18, parágrafo 3º c/c parágrafo 1º do mesmo artigo), toda vez que o aparelho apresentar vício, deixando de funcionar adequadamente, cabe ao fornecedor fazer a troca do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso ou devolver o valor pago pelo mesmo.

Quero, por fim consignar que, se as trocas dos aparelhos implicarem em perdas financeiras para os fabricantes, isso não tem qualquer relevo, pois trata-se de risco de sua atividade atrelada ao fato de que, na verdade, quem está sofrendo perdas são os consumidores, que pagaram para receber os produtos em pleno funcionamento.

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Colunista

Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.