O filme Shrek para sempre, lançado no ano passado, foi um grande sucesso de bilheteria. Uma das partes principais do enredo mostra que aqueles que fazem contratos de adesão para seus clientes incautos assinarem, ocultam cláusulas muitas vezes em letras tão miúdas quanto ilegíveis. No caso de Shrek, a cláusula que permitia a resolução do contrato que ele assinou com o negociante enganador Rumpelstiltskin era muito bem escondida: precisava de uma montagem para ser descoberta.
Pois é, na atual fase do capitalismo a enganação é tão evidente e padronizada que, até em filme de animação para crianças ela é tratada com naturalidade – ainda que, no caso do filme Shrek fique claro que a cláusula abusiva foi inserta no contrato pelo agente do mal. Aliás, não será sempre assim?
Infelizmente, na sociedade capitalista contemporânea uma característica marcante é a má fé de muitos empresários na condução de seus negócios. É feito quase de tudo um pouco para enganar o consumidor e obter ganhos. Os estudos dos consumeristas e das associações de defesa dos consumidores demonstram que a mentira é uma das bases do sistema. E, um modo evidente de desonestidade, de intenção dolosa de enganar o consumidor, é o do conhecido uso das letras com corpo praticamente ilegíveis que, apesar de proibido por lei, continuam sendo utilizadas abertamente.
A pergunta mais óbvia é: porque o fornecedor e seus parceiros publicitários se utilizam de letras miúdas na comunicação de seus produtos e serviços?
Na defesa dos fornecedores, alguém poderia dizer que, por exemplo, nos anúncios de tevê não há espaço (nem tempo) para a colocação de todas as informações. É verdade. Por isso, nesse tipo de veículo não se exige que tudo seja dito. Basta o essencial. Aliás, beira ao ridículo a promoção de tevê com letras miúdas ilegíveis em baixo da tela mostradas por apenas alguns segundos. Será que quem faz a peça acredita mesmo que com isso ele garanta que o fornecedor não seja responsabilizado pela descarada enganação?
O descaso com a inteligência do consumidor chega às raias do sarcasmo. Veja esse exemplo: No ano passado, eu recebi uma mala direta oferecendo vantagens para aquisição de um serviço de internet banda larga. O papel cartonado em formato quadrado com 25 cm x 25 cm continha muita informação e muito espaço em branco. Mas, pasme: num diminuto canto do lado direito ao pé da folha apareciam dezenas de informações em letras minúsculas quase ilegíveis! No espaço de 2 cm X 9 cm havia mais informações relevantes que em todo o folheto.
De fato, as tais letras miúdas são normalmente utilizadas para excepcionar as vantagens da oferta, para diminuir seu uso, para especificar quais consumidores tem direito ao oferecido etc, enfim, para fixar limites ao exercício dos direitos do consumidor ou diminuí-los.
Quando eu recebo esse tipo de folheto sempre me vem a pergunta que um consumidor me fez numa palestra: será que eles pensam que podem nos enganar assim tão facilmente?
Parece que sim. Mas, ao menos duas respostas são possíveis. Uma adiantada acima: o fornecedor com esse tipo de estratagema apenas prova objetivamente sua má fé. A segunda, é a de que o que esse tipo de fornecedor pensa não tem a mínima importância porque ele está violando a lei aberta, clara e deliberadamente. Pois o Código de Defesa do Consumidor (CDC) dispõe de forma diametralmente oposta.
Toda informação ou publicidade veiculada por qualquer meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados obriga o fornecedor e integra o contrato que vier ser a celebrado (artigo 30 do CDC). Ora, também está estabelecido que as cláusulas que implicarem limitação aos direitos do consumidor para terem validade devem ser redigidas em destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. (é o parágrafo 4º do artigo 54)
Lembro que, visando acabar com os abusos ainda existentes no país em relação à redação dos contratos, o parágrafo 3º do art. 54 do CDC foi alterado pela Lei 11.785 de 22-9-2008. Com a modificação operada pela nova lei, a redação passou a ser a seguinte: "Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor".
Essa regra legal é complementada pelo parágrafo seguinte, o 4º, que dispõe: "As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão".
Vê-se, pois, que o destaque para as cláusulas limitadoras do direito do consumidor devem ser exatamente o oposto daquilo que se pratica. Ao invés de miúdas, as letras devem ser graúdas!
É simples assim: o contrato deve ser impresso com caracteres ostensivos e legíveis, com o uso de fonte que permita sua fácil visualização. Como a lei manda dar destaque aos aspectos limitativos, a fonte desse ponto há de ser maior e também em negrito. O tipo há de poder ser claramente identificado no texto. Repito: em destaque!
Basta, portanto, que qualquer um de nós leia folhetos, anúncios impressos ou televisados, malas diretas etc para perceber que a lei não está sendo cumprida.
E, se a lei não está sendo cumprida, a restrição não tem validade. Toda oferta, informação, cláusula etc redigida em letras miúdas não tem legitimidade jurídica, não obrigando o consumidor que tiver feito a transação.
E, para que não pairem dúvidas ou possam vir a dizer que o caso é de "interpretação" (esse lugar comum utilizado largamente na área jurídica), deixo, desde logo, consignado que quem diz que a restrição feita desse modo não tem validade é o próprio CDC. Leia mais esses dois artigos: "Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance" (art. 46). "As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor" (art. 47)
Ou, como se diz, para bom entendedor meia palavra basta: não adianta escrever a palavra inteira em letras miúdas, pois não só ela não tem validade jurídica, como apenas serve de termo de confissão da má intenção de quem escreveu. Além de tudo, denuncia o atraso da mentalidade do empresário que ainda se utiliza dessa tática antiquada.
Por fim, anoto que os Tribunais já vem anulando cláusulas contratuais e até contratos inteiros com base no texto miúdo impresso. Espero que os empresários e seus agentes de comunicação passem a cumprir a lei, porque não dá mais para enganar ninguém, nem ao menos as crianças que assistem ao Shrek.