Processo Disciplinar no Sistema OAB e atualidades jurídicas

A quebra do sigilo profissional do advogado

Quebras de sigilo profissional são comuns nos Tribunais de Ética e Disciplina devido a interesses pessoais ou falta de conhecimento sobre limites do sigilo, frequentemente ocorrendo em casos de conflitos de interesse ou ex-clientes.

1/8/2024

Representações de clientes por quebra do sigilo profissional são bem comuns aos Tribunais de Ética e Disciplina, porque, de fato, são rotineiramente violadas.

Isso ocorre muito em face de interesses pessoais, o que, acertadamente, deve ser objeto de atenção da OAB, todavia, com muita frequência se verifica a ocorrência de tais infrações disciplinares em face da falta de conhecimento dos parâmetros, limites e exceções do instituto, que são pouco conhecidos pelos operadores do direito, incluindo a advocacia, a magistratura e o Ministério Público.

Como se verá à frente, ocorrem, em sua grande maioria, nos casos de demandas que tiveram início com potencial acordo entre as partes e que depois se tornaram litigiosas, optando o advogado por atender uma das partes, mas ciente dos segredos de outra; assim como em casos de advogados ex-empregados de pessoas jurídicas ou que tiveram seus contratos de prestação de serviços rescindidos, e passam a advogar contra essas empresas, representando ex-funcionários demitidos em face das informações privilegiadas que possam possuir.  

O conceito de sigilo profissional não está expresso na lei, mas pode ser alcançado por exercício de hermenêutica, especialmente pela leitura do capítulo VII do Código de Ética e Disciplina, arts. 35 ao 38:  

CAPÍTULO VII

DO SIGILO PROFISSIONAL

Art. 35. O advogado tem o dever de guardar sigilo dos fatos de que tome conhecimento no exercício da profissão.

Parágrafo único. O sigilo profissional abrange os fatos de que o advogado tenha tido conhecimento em virtude de funções desempenhadas na Ordem dos Advogados do Brasil.

Art. 36. O sigilo profissional é de ordem pública, independendo de solicitação de reserva que lhe seja feita pelo cliente.

§ 1º Presumem-se confidenciais as comunicações de qualquer natureza entre advogado e cliente.

§ 2º O advogado, quando no exercício das funções de mediador, conciliador e árbitro, se submete às regras de sigilo profissional.

Art. 37. O sigilo profissional cederá em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria.

Art. 38. O advogado não é obrigado a depor, em processo ou procedimento judicial, administrativo ou arbitral, sobre fatos a cujo respeito deva guardar sigilo profissional.

É tão importante para o exercício da advocacia que o legislador o elegeu como prerrogativa da profissão, na letra do artigo 7º, inciso XIX1 da lei federal 8.906/94.

A doutrina2 anota que:

O sigilo profissional é de ordem pública, implícito, presumido e natural da relação entre advogado e cliente, que está justamente pautada na confiança. O sigilo profissional interessa à própria sociedade, tendo em vista que assegura o pleno direito de defesa do cidadão, garantindo ao cliente a inviolabilidade dos fatos por ele expostos ao seu advogado, daí seu status de ordem pública.

A privacidade se dá não só em relação aos fatos de que o advogado tome conhecimento no exercício da profissão, mas também aos fatos a que tenha tido acesso em razão de funções desempenhadas dentro da OAB, não apenas no que toca às correspondências escritas, mas de qualquer ordem, e-mail, telefonemas, mensagens etc.

O dever de sigilo profissional é ainda mais forte do que o dever de sigilo em geral, pois no caso da advocacia decorre de expressa disposição de lei, enquanto no trato da vida civil diária, decorre da cláusula geral da boa-fé e dos deveres de consideração a ela inerentes (quando não previstos em contrato)”.

Os arts. 20 e 21 do CED estão a tratar das relações do advogado com seu cliente, mas têm mérito específico em disciplinar o dever de sigilo profissional com ex-clientes.

Como dito, são essas hipóteses que, à toda evidência, causam a maioria das representações ético-disciplinares pela quebra do sigilo profissional.

Art. 20. Sobrevindo conflito de interesses entre seus constituintes e não conseguindo o advogado harmonizá-los, caber-lhe-á optar, com prudência e discrição, por um dos mandatos, renunciando aos demais, resguardado sempre o sigilo profissional.

Art. 21. O advogado, ao postular em nome de terceiros, contra ex-cliente ou ex-empregador, judicial e extrajudicialmente, deve resguardar o sigilo profissional.

Esse dever de sigilo profissional do advogado em relação a seu ex-cliente é tão sério que há duas potenciais condutas criminais previstas no Código Penal que podem se amoldar a tais infrações, a violação do segredo profissional do art. 1573 e o crime de patrocínio infiel, conforme a redação do art. 355 caput4 do Código Penal brasileiro.

Muito já se fala no papel institucional dos Tribunais de Ética e Disciplina em contribuir como o Judiciário, tornando-se cada vez mais comum decisões que determinam seja oficiado o Ministério Público local para apuração dos fatos.

O art. 20 do CED tutela contratações que têm início com partes que se entendem e o advogado é buscado por duas ou mais, não interessando se pessoas físicas ou jurídicas. São exemplos dissolução societária, divórcio, acordo de alimentos, réus ou partes requeridas comuns em ações penais ou cíveis, fusões empresariais e outros. Vale ponderar que a norma classifica expressamente as partes como “constituintes”, ou seja, deve haver uma formalização da contratação, como uma consulta jurídica prestada pelo advogado, um contrato ou a outorga de uma procuração de forma a tornar vigente entre as partes a regra do sigilo.

No decorrer do serviço, as partes constituintes do trabalho do advogado entram em conflito de interesse, sendo-lhe impossível atuar para ambas. Deverá, então, optar por uma delas, todavia, não terá o direito de utilizar-se de segredos revelados pela outra, sob pena da infração disciplinar em comento.

É muito comum no cotidiano dos Tribunais de Ética e Disciplina representações disciplinares por essa razão, que não raro vêm acompanhadas de boletins de ocorrência pela prática dos citados crimes, razão pela qual é ideal, se possível, que ao deixar o cliente, o advogado com ele assine um termo de confidencialidade acerca os segredos sob os quais não poderá utilizar em sua atuação, ou seja, quais informações foram partilhadas que estejam classificadas no sigilo profissional. Por óbvio, haverá casos em que o ex-cliente não desejará assinar, daí surge a necessidade de uma notificação com esse conteúdo. É uma garantia ao advogado para evitar um longo e duradouro processo disciplinar.

Assim, por exemplo, em um divórcio que tenha iniciado de forma consensual, optando o advogado por atuar para a mulher posteriormente ao conflito de interesses entre as partes, não poderá divulgar que o homem tem uma amante, algo que lhe foi confidenciado por seu então constituinte; não poderá divulgar seus impostos de renda, que lhe foram disponibilizados sem o conhecimento da então esposa; uma eventual renda extra; um sociedade em imóvel que esteja em nome do sócio, desconhecida da mulher etc.

É fato que omitir tudo isso, no papel de advogado que estará a representar a parte ex adversa, é uma árdua missão, todavia, faz parte do compromisso de advogar. Caso o advogado não se sinta apto para bem representar a parte que escolheu em razão do conflito pelo sigilo profissional que deve manter, o mais correto é que abandone a causa, recomendando a contratação de outro colega.

A situação do art. 21 é mais comum nas relações de trabalho, quando ex-empregador deseja responsabilizar advogado que atuava para a empresa. Quase sempre se trata de representações que vêm acompanhadas da acusação de infração aos incisos III e IV do art. 34, ou seja, o advogado é acusado de captar clientes demitidos da empresa, sendo beneficiado pelo conhecimento de informações sigilosas decorrentes do trabalho que exercia, chamadas de inside information, o que seria facilmente solucionado pela assinatura de um termo de quarentena remunerado.

Esse problema é bastante comum na atividade empresarial e, de fato, o advogado que acaba de ser demitido de uma empresa tem realmente uma vantagem sobre os outros, sendo bastante comum ser procurado para demandas trabalhistas, entretanto, isso não quer dizer que esteja a captar clientes ou a revelar segredos em benefício próprio.

Nesse sentido, recomenda-se fortemente que a empresa realize um acordo de quarentena trabalhista no momento de sua saída, onde mediante a paga de determinado valor o advogado se comprometa a não advogar, não prestar consultoria, não auxiliar ou indicar outros advogados, não estabelecer parcerias e não receber profissionalmente ex-funcionários da empresa para questões trabalhistas e outras disposições, durante determinado período de tempo, sob pena do pagamento de uma multa.  

Aqui, o sigilo profissional está ligado apenas a informações não públicas, sigilosas e apenas de conhecimento da empresa, confidenciadas ao advogado para o exercício de seu trabalho.

Nesse sentido, se o advogado toma conhecimento que durante determinado ano a empresa deixou de pagar o FGTS de funcionários por seis meses, em eventual contratação para reclamação trabalhista posterior, poderá utilizar-se dessa informação, que é pública, bastando ao futuro reclamante pedir na CEF o extrato de depósitos de seu fundo de garantia. Não é disso que se trata o sigilo profissional no caso concreto.

Cabe pontuar que na infração disciplinar em comento o advogado, sem justa causa, quebra o dever de sigilo acima tratado, divulgando dados dos quais tomou conhecimento pelo exercício da profissão.

A justa causa tem status de causa justificante administrativa, ou seja, caso a quebra do sigilo profissional ocorra nessa perspectiva, não há se falar em infração disciplinar.

Conforme transcrito acima, o art. 37 do CED conceitua a justa causa como “circunstância excepcional” mencionando como hipóteses justificantes a “grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria”.

Esse rol é exemplificativo em face da preposição “como” que consta no artigo, ou seja, pode haver outras situações que autorizem a quebra do sigilo profissional que não estejam expressamente citadas no artigo, especialmente se tratar-se de questões ilícitas ou moralmente inaceitáveis.

A título de exemplo, se hipoteticamente advogado demitido de empresa passa a advogar para seus ex-funcionários sem um contrato de quarentena e revela conta corrente secreta em nome de gerente da empresa, funcionária, utilizada para se esquivar de débitos trabalhistas, tornando a empresa insolvente aos olhos de seus credores e da justiça nas execuções que sofre, poder-se-ia estar diante de uma causa justificante, exatamente porque referida prática estaria potencialmente classificada como o crime de fraude à execução previsto no art. 179 do Código Penal5, sem falar na potencial litigância de má-fé e ato atentatório à dignidade da justiça, institutos do processo civil.

O Conselho Federal da OAB é bastante resistente em condenar advogados pelo inciso VII do EAOAB, exatamente porque seu enfrentamento perpassa muito pelo livre exercício da profissão e pelas prerrogativas. Ora, no exemplo acima, resta claríssima a profunda discussão jurídica que tomaria palco no processo, no embate entre a liberdade de advogar, a função constitucional de auxiliar na administração da Justiça6 e os limites do sigilo profissional.

Por essa exata razão, em casos de clientes pessoas físicas ou jurídicas que se entendam lesadas por referida prática, é fundamental a contratação de profissional especializado para patrocinar a representação ético-disciplinar, assim como, no caso dos advogados, sempre importante se resguardar para não infringir o inciso.

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1 Art. 7º São direitos do advogado: (...) XIX - recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional;

2 GONZAVA, Álvaro de Azevedo, Karina Penna Neves, Roberto Beijado Júnior, Estatuto da Advocacia e Novo Código de Ética e Disciplina da OAB, 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. p. 122;

3 Violação do segredo profissional. Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis.  

4 Patrocínio infiel. Art. 355 - Trair, na qualidade de advogado ou procurador, o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em juízo, lhe é confiado: Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.

5 Fraude à execução. Art. 179 - Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. Parágrafo único - Somente se procede mediante queixa.

6 Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

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Colunista

Antonio Alberto do Vale Cerqueira é advogado atuante do Direito Criminal e Administrativo Sancionatório, com especial experiência em processos disciplinares do sistema OAB, CNJ, CNMP e Administração Pública em geral. Conselheiro da OAB/DF. Presidente da Comissão de Seleção da OAB/DF 2010-2012. Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/DF 2019-2021. Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/DF 2022-2024. Membro de Comissões junto ao Conselho Federal da OAB. Procurador Geral da Anacrim 2019-2021. Corregedor Geral Nacional da Anacrim 2022-2024. Vice-presidente da Anacrim DF. Membro da Abracrim. Membro da ABA. Membro Fundador do IGP. Membro do IADF. Professor e palestrante. Instagram: @antonioalbertocerqueira