Processo Disciplinar no Sistema OAB e atualidades jurídicas

Pirataria na advocacia - A captação de clientela e o uso de agenciadores de causas

As condutas administrativas que causam a mácula disciplinar estão sempre voltadas ao próprio interesse e não à grandeza da profissão.

23/1/2023

 

Pirataria na advocacia. A captação de clientela e o uso de agenciadores de causas, também conhecidos como puxadores, atravessadores, captadores, paqueiros ou coiotes. Infrações do artigo 34, incisos III e IV da lei 8.906/94 podendo, todavia, configurar infração mais grave prevista nos incisos XXV ou XXVII. 

As infrações administrativas previstas nos incisos III1 e IV2 do artigo 34 da Lei 8.906/94 são das mais vis praticadas pelo advogado contra sua classe, ainda mais nos tempos atuais, onde o excesso de oferta de serviços jurídicos prejudica sobremaneira colegas que muitas vezes acabam por abandonar a profissão em face das dificuldades do início da carreira.

Assim, já de início, entendemos ser possível a depender do fato o enquadramento da conduta nos incisos XXV ou XXVII do artigo 34 do EAOAB, configurando conduta incompatível com a advocacia ou até o decreto de inidoneidade, a sujeitar o infrator às sanções disciplinares de suspensão ou exclusão, tudo a depender da gravidade da conduta, o que à frente será melhor exposto. 

Anota Paulo Lôbo sobre a infração do inciso III que "é uma infração frequente promovida de forma sutil, especialmente nas ações plúrimas, que danifica o prestígio da advocacia. O agenciador atua de modo organizado, cobrando participação nos honorários, amesquinhando o trabalho do profissional"3.

Essa conduta já encontrava previsão legal no revogado artigo 103, inciso IV da lei 4.215/1963, o antigo EAOAB, hoje substituído pela lei 8.906/94, ou seja, não é de hoje a tentativa da OAB em proteger a boa advocacia contra práticas predatórias e aviltantes à carreira.

Aqui, as condutas administrativas que causam a mácula disciplinar estão sempre voltadas ao próprio interesse e não à grandeza da profissão. São atos egoísticos, onde o advogado beneficiado pela prática cria estratégias – ou é nelas auxiliado ou alimentado – para cooptar causas para sua advocacia de uma forma artificial, comercial, mercantilizada, que não está ligada aos valores da profissão, que nunca deve ser exercida com o objetivo no lucro.

No inciso III há terceiro que entrega novas causas ao advogado, sendo remunerado por isso.

Essa violação é tão conhecida da boa advocacia que as Seccionais criaram apelidos pejorativos para esses angariadores. No Distrito Federal são chamados de puxadores; no Ceará e em Minas Gerais, de laçadores; São Paulo os nomeia paqueiros; Rondônia, Santa Catarina e Rio Grande do Norte, captadores; no Amapá são coiotes e em algumas Seccionais atravessadores.

Sempre, a alimentar esse tipo de pessoa, há um advogado que age dolosa e maliciosamente contra (i) toda a classe, (ii) contra os preceitos éticos de regência da carreira, (iii) contra os elevados valores da profissão e (iv) contra o compromisso legal do artigo 20 do Regulamento Geral da OAB, que o advogado solenemente assume perante o Conselho da OAB quando da sua inscrição: "Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas".

Analogamente, poderia se dizer que os paqueiros ou puxadores estão para os advogados infratores como os ladrões ou assaltantes estão para os receptadores. É uma relação promíscua e muito triste para a advocacia, pois são esses que alimentam aqueles, que nada teriam sem advogados capazes de tais práticas.

Tal relação, de forma idêntica, é sempre lesiva também ao cliente, que uma vez sendo seduzido à contratação de profissional que se presta a tais atos, certamente não será bem atendido, como mereceria ser.

A conduta do inciso IV se confunde bastante com a do III, pois aqui o advogado também realiza a captação de causas, podendo ser auxiliado por terceiro. Ambas têm a mesma sanção disciplinar de censura.

A diferença prática é que no caso do inciso III o advogado tem na figura do agenciador uma espécie de sócio, que é remunerado mediante pecúnia para a captação. Esse pagamento, embora atrelado aos "honorários a receber", tem forma aberta, ou seja, pode ser pago em adiantado; por causa; em percentual futuro sobre o êxito da demanda, valor fixo por procuração assinada etc. Anota a doutrina: "Também se equipara à situação do inciso, aquele que recebe 'gratificações' ou valores fixos, por cada cliente que indicar, os vulgarmente chamados de 'paqueiros'"4.

Já na hipótese do inciso IV, o advogado realiza a conduta ou terceiro a realiza, todavia, não há necessariamente participação em honorários ou pagamento em pecúnia, ou seja, não se faz necessária qualquer vantagem.

Aparentemente, na construção legal que levou à redação final de ambos os incisos, o legislador optou pela separação por razões de organização da norma, para incremento de sua clareza e técnica legislativa, todavia, ambas as condutas estão intimamente ligadas.

Importante destacar que o agenciador pode ser qualquer pessoa física ou jurídica, conforme já decidiu o CFOAB:

"Conduta incompatível com a advocacia, locupletamento, prejuízo causado a interesse de cliente, angariação de causas e utilização de agenciador (empresa) de causas. Infrações disciplinares configuradas. (...) 3) O advogado, ao utilizar-se de empresa que tem por objeto a intermediação de compra e venda de precatórios, obteve dos credores procurações para intervir nos processos originários, já em fase de execução, hipótese em que o processo não havia sido extinto, mas ainda em trâmite, sendo certo que a constituição como advogado nos processos judiciais revela nítido exercício da profissão e, consequentemente, angariação das causas por meio de interposta pessoa, no caso, a empresa da qual o advogado também é sócio e que tem por finalidade abordar credores de precatórios para adquirir os créditos. (...) (RECURSO N. 49.0000.2016.005074-2/SCA-STU, EMENTA N. 098/2018/SCA-STU, Arnaldo de Aguiar Machado Junior, Relator.  DOU, S. 1, 29.06.2018, p. 175)."

Outrossim, nada impede que seja advogado, situação na qual, provavelmente, ambos responderão pelos incisos III e IV do artigo 34 em comento, aplicando-se analogamente os institutos penais do concurso de agentes e de concurso crimes, material ou formal.

Esse entendimento não se opõe às novas alterações do EAOAB promovidas pelas Lei 14.365/2022, que incentivam a realização de parcerias e associações entre advogados e entre sociedades, inclusive com destaque à tributação sobre percentuais cabíveis à cada parte.

Ao advogado é perfeitamente possível que, diante de uma causa que lhe chegue às mãos, conclame um outro colega, especialista na demanda, para com ele celebrar uma parceria, amealhando com isso honorários. Aqui, não há se falar na mácula disciplinar, pois o advogado não está a agenciar causas àquele que fará a demanda.

A sanção disciplinar para ambos os casos é a de censura, que não poderá ser objeto de publicidade pelo limitador do artigo 35, parágrafo único5 da lei.

Também poderá ser convertida em advertência em ofício reservado, quando presente qualquer circunstância atenuante, conforme o artigo 36, parágrafo único.

As circunstâncias atenuantes estão previstas no artigo 406 e são direito subjetivo do representado, ou seja, sempre que estiver presente circunstância que autorizar sua aplicação, o Tribunal deve aplicar.

Vale ressaltar que a infração disciplinar prevista nos incisos III e IV estará presente somente quando não constituir outra, mais grave, como é o caso do inciso XXV, hipótese sujeita à sanção de suspensão para o caso de conduta incompatível com a advocacia.

O Conselho Federal da OAB, inclusive, tem precedente nesse sentido: “Ementa 125/2002/SCA. Comete a infração contida no inciso III, IV e XXV, do art. 34, do EOAB, o advogado que se utiliza de agenciador de causas, dividindo com este, o resultado financeiro auferido, meio a meio, comprovado por demonstrativos contábeis assinados pelo advogado e o interveniente. O advogado que assim procede, mantém conduta incompatível com a advocacia. Mantida a decisão prolatada pela Seccional da OAB/São Paulo. (Recurso nº 0317/2002/SCA-SP. Relatora: Conselheira Ana Maria de Farias (RN), julgamento: 10.12.2002, por unanimidade, DJ 20.12.2002, p. 62, S1)”.

Para ilustrar, vale citar o seguinte caso hipotético, que é baseado em caso real julgado pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/DF. Em uma Subseção do DF com 50.000 habitantes e 350 advogados inscritos, uma obra entregue pelo programa do governo federal "minha casa, minha vida" sofria com vários vícios construtivos. O empreendimento continha cerca de 700 unidades imobiliárias, ou seja, 700 ações indenizatórias contra a construtora e conta a União, responsável pelo programa, cada uma delas com valor da causa aproximado de R$ 30.000,00 e, portanto, com honorários contratuais e de êxito na casa dos R$ 9.000,00. Ciente desse fato, determinado advogado alugou uma "equipe de vendas", colocou um carro de som na porta do condomínio e passou a anunciar que os moradores das unidades poderiam receber aqueles R$ 30.000,00 sem nada pagar, "de graça". Simultaneamente, a "equipe de vendas" corria de porta em porta, colhendo procurações e contratos dos moradores maravilhados com aquela oferta "de graça". O profissional angariou aproximadamente 600 causas em um ou dois dias desse movimento, com um potencial de honorários de R$ 5.400.000,00, subtraindo de seus 350 colegas que adotam boas práticas toda essa carteira de clientes e processos.

Nesse caso, à toda evidência, não se está somente diante da conduta dos incisos III e IV, mas de algo gravíssimo, que lesou gravemente e de forma irreversível centenas de advogados e suas famílias, podendo assim configurar conduta incompatível com a advocacia, ou até mesmo a declaração de inidoneidade do infrator.

São inúmeros os exemplos, como advogados que constituem empesas de fachada para captar clientes lesados por companhias aéreas, por fabricantes de automóveis e outros.

Outro grupo de infratores conhecidos são aqueles que fiscalizam ações coletivas de Sindicatos e, no momento da propositura dos cumprimentos de sentença, passam a assediar os sindicalizados beneficiados com a oferta de seus serviços por honorários baixíssimos, de forma a subtrair tal clientela dos advogados que propuseram a ação ou de outros, que por escolha do beneficiado pudessem vir a ser procurados.

Todas essas condutas, que muitas vezes subtraem do mercado milhares de causas que serviriam a milhares de advogados, constituem um ataque contra toda a advocacia e merecem punição exemplar, pois condutas que extrapolam os limites dos incisos III e IV.

Em conclusão, quando a situação concreta revela manobras sutis de captação de clientela, as condutas administrativas estarão previstas nos incisos acima, todavia, quando os fatos tiverem gravidade apta a lesar gravemente a advocacia, caracterizando verdadeira ação predatória, estaremos diante da pirataria na advocacia, conduta punível com sanções mais graves, de suspensão ou exclusão dos quadros da OAB.

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1 Art. 34. Constitui infração disciplinar: (...) III - valer-se de agenciador de causas, mediante participação nos honorários a receber;

2 Art. 34. Constitui infração disciplinar: (...) IV - angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros;

3 LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 10ª ed, São Paulo: Saraiva, 2017. p. 182;

4 GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Estatuto da Advocacia e Código de Ética e Disciplina da OAB Comentados. Álvaro de Azevedo Gonzaga, Karina Penna Neves e Roberto Beijato Júnior. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2019. p. 182;

5 Art. 35. As sanções disciplinares consistem em: I - censura; II - suspensão; III - exclusão; IV - multa. Parágrafo único. As sanções devem constar dos assentamentos do inscrito, após o trânsito em julgado da decisão, não podendo ser objeto de publicidade a de censura.

6 Art. 40. Na aplicação das sanções disciplinares, são consideradas, para fins de atenuação, as seguintes circunstâncias, entre outras: I - falta cometida na defesa de prerrogativa profissional; II - ausência de punição disciplinar anterior; III - exercício assíduo e proficiente de mandato ou cargo em qualquer órgão da OAB; IV - prestação de relevantes serviços à advocacia ou à causa pública. Parágrafo único. Os antecedentes profissionais do inscrito, as atenuantes, o grau de culpa por ele revelada, as circunstâncias e as consequências da infração são considerados para o fim de decidir: a) sobre a conveniência da aplicação cumulativa da multa e de outra sanção disciplinar; b) sobre o tempo de suspensão e o valor da multa aplicáveis.

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Colunista

Antonio Alberto do Vale Cerqueira é advogado atuante do Direito Criminal e Administrativo Sancionatório, com especial experiência em processos disciplinares do sistema OAB, CNJ, CNMP e Administração Pública em geral. Conselheiro da OAB/DF. Presidente da Comissão de Seleção da OAB/DF 2010-2012. Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/DF 2019-2021. Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/DF 2022-2024. Membro de Comissões junto ao Conselho Federal da OAB. Procurador Geral da Anacrim 2019-2021. Corregedor Geral Nacional da Anacrim 2022-2024. Vice-presidente da Anacrim DF. Membro da Abracrim. Membro da ABA. Membro Fundador do IGP. Membro do IADF. Professor e palestrante. Instagram: @antonioalbertocerqueira