COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Circus >
  4. Lupus lupi homo

Lupus lupi homo

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Atualizado em 8 de dezembro de 2011 13:51

 

"Estou firme como uma rocha".

Ministro Wagner Rossi

"Sinto-me indestrutível".

Ministro Orlando Silva

"Para me tirar daqui só a bala".

Ministro Carlos Lupi

"Vou-me embora deste país de merda".

Primeiro Ministro Silvio Berlusconi

"Caro Adauto, permita-me a ousadia: o texto é contraditório em seus termos, para usar uma expressão nitzscheneana; afinal, se os tempos são de efemeridades e pouco esforço (líquidos, segundo Bauman), a proposta de leitura mais longa, mais contemplativa, está em descompasso (Circus 252 - 28/10/11). E Pavese já alertava: trabalhar cansa. Pensar, então... Tempos tristes, sem cor, sem brilho, sem magia. Não sei se a maioria de nós preocupa-se ou quer ao menos preocupar-se com essa indagação, mas é reconfortante pensar que ainda há quem insista, a seu modo. Por favor, não desça do caixote! Um abraço. Cleon Bassani".

Migalhas dos Leitores, 3/11/2011

Faça esta experiência: leve seu filhinho, seu sobrinho ou seu netinho, se ele já souber andar, ao playground ou à sala de brinquedos do prédio onde ele mora, quando ali haja outras crianças de mesma idade ou quase isso. Deixe-o junto das outras crianças e fique observando-os de longe. Certamente ali haverá brinquedos como cavalinho-de-pau ou balanço, que, entretanto, não poderão ser desfrutados por todas as crianças ao mesmo tempo. Que acontecerá, por exemplo, quando mais de uma criança pretender utilizar o mesmo cavalinho ou o mesmo balanço ao mesmo tempo? Enquanto você observa os pequerruchos, permita-me dirigir-me aos demais leitores.

Segundo alguns estudiosos, foi um mineiro, sentado na soleira da porta de seu casebre, picando fumo, enquanto observava o galo a correr atrás de uma galinha, quem pela primeira vez fez as três indagações célebres: "Oncotô? Donqueuvim? Prondeuvô?", fato que até está documentado (clique aqui) . Passava por ali um alemão, anotou aquilo, traduziu, deu-lhe uma garibada e o "Wer bin ich? Woher komme ich? Wohim gehe ich?" correu o mundo. Aliás, ainda corre, pois as respostas têm sido tantas que foi necessário destruir algumas florestas para imprimir tantos livros que se escreveram sobre o tema, seja no campo da Religião, seja no campo da Filosofia, de onde, aliás, se desgarrou a Ética. E tome mais árvores derrubadas.

As religiões, aliás, possuem "normas éticas reveladas", o que faz supor que, sem o patrocínio da divindade, que as teria revelado a alguém especial, tudo o que teríamos seriam as reflexões filosóficas sobre o Bem e o Mal. Por outro lado, com a laicização da sociedade (para não falarmos na "morte de Deus") (clique aqui), tornou-se necessária a edição de "normas éticas positivas' (a expressão "jus positus", como sabemos, refere-se às regras que são postas e impostas pelo governante do grupo social), ou normas jurídicas. É claro que a efetiva positivação dessas normas, no sentido de serem punidos aqueles que a desobedecem, dependerá da qualidade do Poder Judiciário que a sociedade tiver.

Se a Filosofia é coisa de desocupado, como já escrevi por aqui (clique aqui), a Ética tem um lado mais simpático: sua praticidade. Por exemplo, se o morador do apartamento de cima resolve, às 3 horas da manhã, empunhar o revólver e refletir se aperta ou não aperta o gatilho, isso não me diz respeito, pois sua angústia existencial está no subjetivo campo da Filosofia. Mas se ele, efetivamente, apertar o gatilho, o barulho do tiro interferirá na minha vida, pois eu não gostaria de ter o meu sono interrompido, especialmente daquela forma. Passamos agora para o campo da Ética. Quando a violação da regra ética não se limita ao desrespeito do sono alheio, mas vai além disso (antes de tentar matar-se, sem êxito, meu vizinho matou a esposa), o administrador do grupo social deve tomar providências para fazer cessar o abuso e, ao mesmo tempo, desestimular sua repetição, seja por parte daquele infrator, seja por parte de todos os infratores possíveis. Estamos, já se vê, no campo do Direito. E do Poder Judiciário, é claro, pois lei sem juiz é revólver sem munição.

Estamos aqui conversando e eu fiquei preocupado com aquelas crianças que ficaram no playground ou na sala de jogos do prédio. Melhor voltar lá.

Uma das três criancinhas tentou sentar no cavalinho-de-pau, logo quando uma outra teve a mesma ideia, veja que coincidência lamentável. Puxa daqui, puxa de lá e tudo o que conseguiram foi um berreiro danado. A mãe de uma quarta criança interferiu, conversou com esta criança, conversou com aquela outra, e nada conseguiu, a não ser aumentar o berreiro. Em razão disso, a moça responsável pela área de lazer, perdendo a paciência, decretou "tempo esgotado!", pôs todo mundo pra fora e fechou a porta da sala de jogos.

Quais seriam os desdobramentos disso se você fosse a mãe de uma daquelas criancinhas?

Eu poderia encerrar o texto aqui, esperando que os leitores me enviassem sua resposta, mas minha experiência me diz que eu poderia ficar esperando sentado por tanto tempo que a crônica jamais seria concluída, pois os leitores do Migalhas são ocupadíssimos. Pensemos, então, em algumas reações possíveis.

Talvez você, depois do jantar, dissesse a seu marido. "Sabe, benhê, hoje aconteceu um troço na sala de jogos que nem te conto. Aquela sirigaita que toma conta da sala expulsou o nosso filho, só porque ele queria brincar num cavalinho-de-pau? Pode?".

Ou então: "Acho que devemos cuidar melhor da educação do Júnior, pois ele precisa aprender que as outras crianças também têm direito de brincar".

Ou: "Hoje nossa capetinha aprontou mais uma. Ela quando quer uma coisa quer mesmo! Tem tudo para ser uma diretora de RH numa multinacional que nem a mãe. Você não acha, amore?".

Essa brincadeira pretende mostrar que são vários os possíveis enfoques de uma questão ética, que, no caso, pode ser assim sintetizada: "Devemos por limites na conduta das pessoas?". A questão poderia também ser assim formulada: "Como devemos educar nossos filhos para que sejam adultos responsáveis e bem realizados?".

Também já falei disso aqui, mas você nem notou (clique aqui), motivo pelo qual estou dando um bis.

Tradicionalmente, como lembra o Gikovate num livro recente, as pessoas eram rotuladas de "egoístas" ou de "altruístas". A tendência para o egoísmo era tanta que havia até um aforismo que sintetizava isso: "Quando o pirão é pouco, meu prato primeiro". Além da discussão sobre a prioridade no servir-se do tal pirão havia também a discussão a respeito do número de colheradas de pirão que seria razoável eu botar no meu prato.

Há, na verdade, fortes argumentos éticos à disposição dos sofistas que tanto embasariam o cabimento do "meu prato primeiro" como o rejeitariam. Em primeiro lugar, contra ele se dirá que, como vivemos numa cultura cristã, é digno de lembrar que o mandamento cristão nos diz que devemos "amar o próximo". Logo, o pirão deve ser dele. Sofisma evidente, pois o que o mandamento diz é exatamente o contrário: "amar ao próximo como a si mesmo". Ou seja, para que eu tenha um padrão de amor que devo observar ao amar o próximo, devo, antes disso, conhecer esse padrão, o que vem indicado na palavra como. Assim, num primeiro momento eu me amo, para conhecer o padrão; num segundo momento, conhecendo o padrão de conduta, aplico-o na relação com meu próximo. Até porque cuidar da própria saúde e da própria vida também é dever ético de todos nós em nossa cultura.

Reparando bem, estamos diante de um novo sofisma: quem nos assegura que, para conservar minha saúde e minha vida eu devo comer todo o pirão? Certamente, se eu repartir o pirão entre nós dois tanto a minha vida como a vida do meu próximo estarão sendo preservadas. Ou então morreremos os dois.

Quando o esfomeado, figurativamente, não só esvazia a panela como até avança sobre o pirão que está no prato alheio, aí o rótulo já não será "egoísta", mas "criminoso". Até porque as regras jurídicas contemplam aquilo que alguns autores chamam de "mínimo ético exigível".

Suponhamos que alguém foi educado a contrabalançar o egoísmo natural com o altruísmo necessário ao convívio social e desenvolveu aquilo que se chama generosidade. Nada muito difícil. Basta observar duas regras: "não fazer a outrem aquilo que não gostaria que lhe fizessem" e "tratar o próximo como gostaria de ser tratado". Por força disso, já adulto, quando entra no elevador e ali há outras pessoas, ele exclama (desejo-lhes que tenham um) "bom dia!". Quantas agradecem? Quantas retribuem? Pouco importa. Ele sabe que a generosidade não exige retorno. Ele acredita que ser generoso é algo que lhe faz bem e isso lhe basta. Certo dia, porém, ao fazer o cumprimento de sempre, alguém lá no fundo exclama "Xi! Chegou aquele caretão chato". Imaginemos que você esteja no elevador. Qual será sua reação?

Para simplificar, fiquemos com três hipóteses: a) você ri do comentário; b) você censura o comentarista por sua grosseria; c) você fica calado.

No primeiro caso, você revela seu lado egoístico, pois se diverte com o prazer obtido por alguém à custa de ridicularizar a conduta de outrem. No segundo caso, você revela seu lado altruístico, pondo-se ao lado de quem foi ridicularizado por haver-se mostrado generoso. No terceiro caso, embora não pareça, você também se postou ao lado do ridicularizador, pois, com seu silêncio, preocupou-se apenas consigo, como é próprio dos egoístas, "não se metendo em problema alheio". É que os problemas éticos nunca são apenas individuais. Eles ultrapassam a esfera individual, pois dizem com o bem-estar de toda a comunidade.

É evidente que ninguém é apenas egoísta ou apenas altruísta. Ao longo do dia todos nós temos momentos em que prevalece uma ou outra dessas características de nosso caráter. Há quem sustente que mesmo nos atos de generosidade está presente o egoísmo. Millôr Fernandes sintetizou isso em uma de suas conhecidas e irreverentes boutades: "Madre Tereza de Calcutá é tão egoísta que quer o céu só para ela".

Quando dizemos ser alguém uma pessoa generosa, é porque os seus gestos de altruísmo superam os de egoísmo; quando chamamos alguém de egoísta é porque o reverso é que em geral ocorre. Considerando, no entanto, que a pessoa egocentrada típica considera que o mundo existe para servi-la, a convivência entre alguém exageradamente egoísta e outra exageradamente altruísta acarretará um relacionamento caracterizado pela neurose complementar: a generosidade de um alimenta o egoísmo do outro; o egoísmo de um sugere ao outro que ele não é tão generoso quanto ele supunha ser, exigindo dele doar-se cada vez mais. Quanto tempo durará esse jogo? O altruísta conseguirá deixar de sê-lo ao descobrir que está sendo explorado pelo egoísta? Quanto custará a seu amor próprio esse rompimento com seus princípios? Como ele reagirá ao descobrir que não era tão desinteressado pelo aplauso como procurava convencer-se de que era?

É difícil imaginar que em uma sociedade competitiva como a nossa ainda haja alguém generoso por convicção íntima. Estou, por exemplo, chegando à conclusão de que aquilo que distingue os homens públicos de nós, que não pertencemos a esse seleto clã, não é o egoísmo deles e o altruísmo nosso. É, pesa dizê-lo, o egoísmo desmedido da maioria deles (que, no limite, conduz à confusão entre os interesses públicos relacionados ao cargo que ocupam e os interesses particulares dos seus ocupantes) e o egoísmo comedido da maioria de nós (que nos esforçamos para manter-nos na ala dos honestos, talvez menos por convicção e mais por temor de eventuais represálias, coisa que a maioria dos homens públicos não mais tem, por motivos de todos conhecidos).

Para o Tito Plauto, que nasceu muito antes de Cristo, quando ainda não haviam inventado o Brasil, o homem é o lobo do homem. Não ofendam o bichinho, que não funda partido político nem cria ONGs. A experiência nos mostra que o lobo, graças a nosso mau exemplo, é que se tornou o homem do lobo.