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Haverá, sim, Copa do Mundo!

E estaremos lá, não nos estádios, e sim nas ruas!

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Atualizado em 3 de fevereiro de 2014 17:17

A política do "Pão e do Circo", que se afigura como uma das mais remotas formas de controle social, foi a metodologia utilizada pelos líderes romanos para controlar a população: sem fome e entretido, o cidadão não se preocupava com a coisa pública. Cereais e grãos eram distribuídos à população, que passava boa parte de seu tempo nas grandes arenas se divertindo com espetáculos como a luta entre gladiadores, animais ferozes, corrida de cavalos, acrobatas e palhaços.

Barrigas entupidas com nada e cabeças ocupadas também com nada.

O fundamento ideológico, contudo, muito se distanciou da ideia de Estado assistencialista. O seu real objetivo, como retrata a literatura, era ocultar da população os reais problemas sociais experimentados à época como péssima distribuição de riquezas e de terras, falta de saneamento básico, exploração no trabalho, etc.

De lá para cá, nada evoluiu; pelo contrário, esta política se modernizou, e o reflexo é e será sentido por todos nós.

O "Pão" foi substituído por uma extraordinária atuação do Estado assistencialista tal qual se percebe por meio de políticas públicas como o "Fome Zero". Pronto: povo alimentado.

O "Circo", por sua vez, encontrou facilmente inúmeros substitutivos. As tardes de domingo são preenchidas com programas de palco e todas as noites dos são ocupadas pelas novelas das oito, e depois com mulheres gostosas e homens sarados no BBB. O cidadão passa a semana desejando o "paredão" ou "a morte daquele personagem da novela". Seja numa TV 3D ultramoderna daquelas que, um dia, seu ator preferido sairá dela para lhe dar um beijo ao vivo, ou numa singela TV preto e branco que só funciona porque o cidadão colocou Bombril na ponta da antena quebrada, os indicativos de audiência confirmam esta tese democrática. Vivemos no país do futebol e, hoje, o calendário futebolístico ocupa praticamente onze dos doze meses do ano do brasileiro (pronto: povo distraído e feliz)... e 2014, Copa do Mundo no Brasil, que cujo legado será uma série de elefantes-brancos (ops!, estádios) pelo Brasil. Enfim...

Ao "Pão" e ao "Circo", somam-se, modernamente, um elemento: a relativização do conceito de soberania pelas forças econômicas, o que se pode observar com a edição da lei geral da Copa, flagrantemente cheia de inconstitucionalidades.

Em 2013, houve a maior demonstração do exercício da democracia pelo brasileiro. Este autor esteve presente em praticamente todas as manifestações, e testemunhou a legitimidade de tais movimentos. A experiência com a juventude nas ruas e em delegacias durante as madrugadas foi extraordinária. Com isso, surgiu vertente de pensamento com o slogan "Não haverá Copa!". De fato, inúmeros absurdos foram percebidos durante a Copa das Confederações, tal qual o lamentável "perímetro FIFA" (Estado de Sítio). Paremos por aqui.

Com isso, me veio em mente uma reflexão teórica sobre esta ideia, sobretudo com as tendências das Políticas Criminais e de Segurança Pública.

Será que não haverá Copa?

Comecemos com o presente e com o futuro da legislação. Se o Brasil for campeão e você invadir o campo para comemorar, estará praticando crime. Se houver publicidade por intrusão, crime. E por aí vamos com o Estatuto do Torcedor e com a lei geral da Copa.

Em breve, se o cidadão exercer qualquer de qualquer forma o seu direito de reunião para manifestar seu pensamento contra a FIFA, seus patrocinadores, a Copa do Mundo... será considerado terrorista. Aliás, já é considerado, mas terá um tratamento diferenciado com uma modesta pena de até 30 anos. Não é mentira, está no PL 728/11. O futuro não parece bom.

O maior mal existente não tem sido debatido ou publicizado. Poucos sabem de sua existência. Ninguém o critica. Refiro-me à nova lei de segurança nacional... leitor atento, perdão, erro de interpretação (!!!)... na verdade é um simples ato administrativo, portaria normativa 3.461/MD, de 19 de dezembro de 2013, do Ministério de Estado da Defesa (facilmente encontrado com o PhD. Google) editado quando o cidadão já se planejava para degustar um delicioso peru de Natal e pensava no saco gordo de presentes do Papai Noel (olhe o "Pão e o Circo" presentes!). Ninguém leu o Diário Oficial e a informação não chegou ao Facebook (Diário Oficial do século XXI), ou seja, passou despercebido...

A leitura de seu artigo 1º é de causar mal estar: "Aprovar a publicação 'Garantia da Lei e da Ordem - MD33-M-10 (1ª Edição/2013)', na forma do anexo a esta Portaria Normativa." Caminhamos numa péssima direção quando chegamos no item 1.1: Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO)" e pioramos quando avançamos em suas bases legais (itens 1.2 e 1.3).

Qual seria sua aplicabilidade? A portaria responde (item 1.4):

- "Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem".

- "Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio".

- "Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela população em geral".

O seu uso será excepcional (itens 2.2.1 e 2.2.2), e levará em consideração a "... opinião pública de forma favorável à operação" (item 4.1.1).

Como exemplo das principais ameaças (item 4.4), temos: a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação; b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras; c) bloqueio de vias públicas de circulação; d) depredação do patrimônio público e privado; e) distúrbios urbanos; f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; g) paralisação de atividades produtivas; h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País; i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e j) saques de estabelecimentos comerciais.

Dentro de suas principais ações, estão: a) assegurar o funcionamento dos serviços essenciais sob a responsabilidade do órgão paralisado; b) combater a criminalidade; c) controlar vias de circulação urbanas e rurais; d) controlar distúrbios; e) controlar o movimento da população; f) desbloquear vias de circulação; g) desocupar ou proteger as instalações de infraestrutura crítica, garantindo o seu funcionamento; h) evacuar áreas ou instalações; i) garantir a segurança de autoridades e de comboios; j) garantir o direito de ir e vir da população; k) impedir a ocupação de instalações de serviços essenciais; l) impedir o bloqueio de vias vitais para a circulação de pessoas e cargas; m) interditar áreas ou instalações em risco de ocupação; n) manter ou restabelecer a ordem pública em situações de vandalismo, desordem ou tumultos; o) permitir a realização do pleito eleitoral dentro da ordem constitucional; p) prestar apoio logístico aos OSP ou outras agências; q) proteger os locais de votação; r) prover a segurança das instalações, material e pessoal envolvido ou participante de grandes eventos; s) realizar a busca e apreensão de materiais ilícitos; t) realizar policiamento ostensivo, estabelecendo patrulhamento a pé e motorizado; u) restabelecer a lei e a ordem em áreas rurais; e v) vasculhar áreas.

Ano que só se inicia em março após o carnaval, ano de eleições e Copa do Mundo. Grande massa da população explorada politicamente que ainda vive na sobra desta moderna política do "Pão e do Circo" e Políticas Criminais e de Segurança Pública voltadas à falha política da Lei e da Ordem. Com isso, o exercício da democracia fica em xeque, a participação popular na vida pública limitado e a Constituição rasgada.

Haverá Copa? Fico triste como cidadão, fico horrorizado como jurista... e concluo: Haverá, sim, Copa do Mundo!

E estaremos lá, não nos estádios, e sim nas ruas!

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* Felipe Machado Caldeira é advogado, sócio do Luchione Advogados.

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