Constitucionalidade e legitimidade da criação do Conselho Nacional de Justiça  

Luís Roberto Barroso* 

Introdução

A emenda constitucional nº 45/04 e a criação do Conselho Nacional de justiça  

Parte I

O Poder Judiciário em um estado democrático de direito

I. A ascensão institucional do Poder Judiciário sob a Constituição de 1988

II. Função jurisdicional, administração da Justiça e participação da sociedade  

Parte II

Alguns conceitos fundamentais e o debate constitucional contemporâneo

III. Princípio majoritário, cláusulas pétreas e controle de constitucionalidade

IV. O princípio da separação de Poderes

V. O princípio da forma federativa de Estado  

Parte III

Exame específico das impugnações e aplicação da teoria à solução da ADIn nº 3.367-DF

VI. Resumo dos argumentos expostos na ADIn nº 3.367-DF

VII. O Conselho Nacional de Justiça não viola o princípio da separação de Poderes

VIII. O Conselho Nacional de Justiça não viola o princípio da forma federativa de Estado

IX. Suposta “inconveniência” não é fundamento válido para a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional  

Conclusões  
__________

Introdução

A emenda constitucional n. 45/04 e a criação do Conselho Nacional de Justiça

1. Ao fim de mais de uma década de debates parlamentares, com ampla participação dos diferentes setores interessados, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, de 8.12.04, na qual se consubstancia o que se denominou de Reforma do Judiciário. Em uma de suas inovações mais marcantes, a EC nº 45/2004 cria o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com competência para o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (CF, art. 103-B, § 4º).  

2. O Conselho Nacional de Justiça, a ser presidido por um Ministro do Supremo Tribunal Federal, integra o Poder Judiciário (CF, art. 92, I-A) e será composto por quinze membros, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal (CF, art. 103-B e § 2º). Dentre os conselheiros, nove serão magistrados de diferentes níveis de jurisdição, indicados por tribunais, e seis serão externos à magistratura: dois membros do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos1.  

3. Desde a primeira hora, a idéia da criação de um órgão de controle social do funcionamento da Justiça, integrado por pessoas externas à magistratura, enfrentou aguerrida resistência. No plano político, a matéria foi superada, pela deliberação majoritária qualificada do Congresso Nacional, atuando como poder constituinte derivado, que aprovou a EC nº 45/2004. No plano jurídico, trava-se a última batalha: a da determinação da constitucionalidade ou não do Conselho Nacional de Justiça em face dos princípios da separação de Poderes e da forma federativa de Estado (CF, art. 60, § 4º, I e III). A questão está posta perante o Supremo Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn nº 3.367-DF) proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), entidade de classe de âmbito nacional cuja legitimidade institucional e representatividade são inquestionáveis.  

4. A seguir, as razões pelas quais se sustenta que a criação do Conselho Nacional de Justiça é constitucional, democrática e favorável ao Judiciário.  

Parte I

O Poder Judiciário em um estado democrático de direito

I. A ascensão institucional do Poder Judiciário sob a Constituição de 1988  

5. Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Sob a Constituição de 1988, recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Embora seus métodos e argumentos sejam jurídicos, não é possível deixar de reconhecer a repercussão, sobre o interesse público, de decisões judiciais sobre os temas mais variados, que incluem o valor de tarifas públicas, a definição das hipóteses legítimas de interrupção da gestação ou a definição dos poderes do Ministério Público na investigação criminal.

6. Sem embargo de desempenhar um poder político, o Judiciário tem características bem diversas das dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para ser desempenhado por agentes públicos selecionados com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis.

7. É certo, contudo, que o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um Estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. Embora tal assertiva não se afaste do conhecimento convencional, a verdade é que a percepção concreta desse fenômeno é relativamente recente. O distanciamento em relação à sociedade, à opinião pública e aos meios de comunicação fazia parte da tradição de isenção e de auto-preservação do Judiciário. Embora a intenção fosse a da reserva e da virtude, a conseqüência foi uma disseminada incompreensão acerca do papel e da importância das instituições judiciais.

8. Ao longo da década de 90, todavia, este quadro começou a mudar. O Judiciário passou a dialogar com a sociedade, a exibir suas estruturas e carências, mostrando-se de maneira transparente e dando satisfações de sua atuação. É impossível exagerar a importância dessa mudança na atitude das instituições judiciais, sendo certo que as associações de classe da magistratura deixaram de ser pólos corporativistas, passando a ser instâncias de reivindicação em face do governo e de aproximação com a comunidade. O fato é que, ao aceitar e apreciar o papel de ser um poder político, o Judiciário passou a estar sujeito às regras do jogo: tolerância com a crítica e disposição para receber o sol radiante da opinião pública.

9. Mas há aqui uma fina sutileza. Embora deva ser transparente e prestar contas à sociedade, o Judiciário não pode ser escravo da opinião pública. A ribalta, a fogueira de vaidades ateada pela mídia, as paixões que a exposição pública desperta são freqüentemente incompatíveis com a discrição e recato que devem pautar a conduta de quem julga. Aos juízes pode caber, eventualmente, dar o pão, nunca o circo. Muitas vezes, a decisão correta e justa não é a mais popular. Juízes e tribunais não podem ser populistas nem ter seu mérito aferido em pesquisa de opinião. Devem ser íntegros, seguir as suas consciências e motivar racionalmente as suas decisões.

10. Neste contexto, caracterizado pela ascensão institucional, representatividade política e necessidade de preservação da independência do Judiciário, é que foi concebida a criação de um órgão de composição mista, apto a promover sua adequada comunicação com a sociedade e com as instituições políticas. Uma via de mão dupla, capaz de transmitir as expectativas dos cidadãos e de compreender as circunstâncias das instituições judiciais. Dentre outras funções, ao Conselho Nacional de Justiça caberá, sem interferir na atividade jurisdicional, planejar estrategicamente a instituição, reivindicar verbas e compromissos, apresentar relatórios estatísticos, zelar pela universalização do acesso à justiça e, quando for o caso, punir desvios de conduta. Sua criação é a favor e não contra o Judiciário.

II. Função jurisdicional, administração da Justiça e participação do administrado  

11. Ao Judiciário compete o desempenho da função jurisdicional, caracterizada, em sua feição típica, como a atividade de formulação, no âmbito de um processo, da regra de direito destinada a reger os casos concretos levados à sua apreciação, impondo-se coativamente à vontade das partes. Os elementos centrais da definição, como é fácil perceber, são a atuação concreta do direito no âmbito de um processo, o caráter substitutivo e a inércia (ausência de iniciativa) do órgão jurisdicional, cuja atuação é necessariamente deflagrada por um agente externo. Desses elementos, apenas o primeiro – atuação concreta do direito – é encontrado também na função administrativa, já que a Administração é parte nas relações que integra e, via de regra, deve agir de ofício, orientada pelo interesse público2.  

12. Paralelamente ao exercício da jurisdição, o Judiciário realiza licitações para aquisição de materiais e serviços, organiza concursos públicos para o provimento de seus cargos, concede férias e licenças a seus servidores, instaura processos administrativos, disciplinares ou não. Enfim, o Judiciário administra3. A razão que justifica o desempenho dessa função atípica está relacionada com a separação de Poderes e consiste basicamente na garantia de autonomia para o Poder, que ficaria vulnerada se a manutenção de sua estrutura e o provimento de suas necessidades fossem confiados à decisão discricionária de agentes externos de outros Poderes.

13. Não se nega, portanto, que exista uma relação de instrumentalidade entre o exercício da função administrativa em âmbito interno e o desempenho adequado da função jurisdicional. É isso que justifica, aliás, as garantias especiais – inalteradas pela EC nº 45/2004 – conferidas aos magistrados em sua relação com o Estado, na qualidade de agentes públicos4, a ele ligados por vínculo de natureza administrativa5. É certo, porém, que essa relação de dependência instrumental está presente nos três Poderes, já que até mesmo no Executivo é possível dissociar a administração interna do desempenho da função administrativa como exercício direto da potestade pública. Em qualquer caso, o que importa destacar é que o Poder Público em geral organiza-se para o atendimento de certos fins, não para sua própria satisfação, como um fim em si mesmo6.  

14. Assim, tal como qualquer estrutura administrativa, a estrutura judiciária deve ser orientada ao oferecimento de serviço adequado e eficiente. Em um universo de recursos escassos, a eventual ineficiência de qualquer um dos Poderes não é assunto interna corporis, na medida em que esvazia direitos fundamentais. Mais do que um truísmo ético, trata-se também de uma imposição dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública em sentido lato, aplicáveis à atividade administrativa dos três Poderes7, cujo elenco vem positivado no caput do art. 37 da Constituição e desenvolvido em vários de seus incisos e parágrafos. É o caso, e.g., do princípio da publicidade, que encontra uma importante concretização no § 3º do art. 37, referente à participação dos administrados8. No mesmo sentido é a previsão de cabimento de ação popular para a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou à moralidade administrativa9.  

15. A participação da sociedade na gestão pública não é, portanto, estranha ao ordenamento constitucional, quer de forma direta, quer por meio da intervenção do Ministério Público, a quem a Constituição atribui a função genérica de defesa da ordem jurídica10 e especificamente a de zelar pelo cumprimento dos direitos constitucionalmente assegurados, por parte dos Poderes Públicos11. Em suma, a Constituição não cria uma redoma em torno da Administração Pública, afastando o controle da sociedade. Pelo contrário, admite a instituição de mecanismos de participação popular até mesmo por lei ordinária. Pelos mesmos motivos, a jurisprudência reconhece pacificamente a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública destinada à preservação dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública12. Assim, o controle social não é propriamente externo a nenhum órgão administrativo, mas inerente à sua configuração constitucional.

Parte II

Alguns conceitos fundamentais e o debate constitucional contemporâneo  

III.  Princípio majoritário, cláusulas pétreas e controle de constitucionalidade  

16. A idéia de Estado democrático de direito, consagrada no art. 1º da Constituição brasileira, é a síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia. Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição.

17. As complexidades e sutilezas dessa confluência de conceitos são o pano de fundo de uma das mais abrangentes e duradouras discussões do constitucionalismo moderno: a que envolve a legitimidade da jurisdição constitucional13. Seu ponto máximo de tensão se encontra no controle de constitucionalidade: a possibilidade de órgãos judiciais paralisarem a eficácia de atos normativos em geral, especialmente os emanados do Poder Legislativo, órgão de representação da vontade majoritária. Aí surge a dificuldade contra-majoritária: nessa expressão, lavrada por Alexander Bickel, reside um universo de potencialidades e contradições, decorrentes do fato de órgãos que não trazem o batismo da legitimação popular terem o poder de afastar ou conformar normas e políticas públicas produzidas por representantes eleitos.

18. A subsistência da polêmica e a busca constante de legitimação nas relações entre o constituinte e o legislador revelam um imperativo dos tempos modernos: o de harmonizar a existência de uma Constituição – e dos limites que ela impõe aos poderes ordinários14 – com a liberdade necessária às deliberações majoritárias, próprias do regime democrático. As perguntas que desafiam a doutrina e a jurisprudência podem ser postas nos termos seguintes: por que um texto elaborado décadas ou séculos atrás (a Constituição) deveria limitar as maiorias atuais? E, na mesma linha, por que se deveria transferir ao Judiciário a competência para examinar a validade de decisões dos representantes do povo? As respostas a estas indagações já se encontram amadurecidas na teoria constitucional15 e podem ser resumidas como se faz no parágrafo a seguir.

19. A Constituição de um Estado democrático tem duas funções principais. A primeira é veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, que não devem ser preteridos por maiorias políticas ocasionais16. A segunda é assegurar o espaço próprio do pluralismo político, representado pelo abrangente conjunto de decisões que não podem ser subtraídas dos órgãos eleitos pelo povo a cada momento histórico. A Constituição não pode abdicar da salvaguarda de valores essenciais e da promoção de direitos fundamentais, mas não deve ter, por outro lado, a pretensão de suprimir a deliberação legislativa majoritária e jurisdicizar além da conta o espaço próprio da política. O juiz constitucional não deve ser prisioneiro do passado, mas passageiro do futuro17.

20. A conciliação dessas duas funções faz-se por mecanismos tradicionais de auto-contenção judicial18 e pelo princípio da presunção de constitucionalidade das leis19. A cautela e deferência hão de se acentuar, por certo, quando o ato normativo em discussão seja uma emenda constitucional, que tem o batismo da maioria qualificada de 3/5 (três quintos) de cada casa do Congresso Nacional, manifestada em dois turnos de votação. A possibilidade de controle de constitucionalidade de emendas constitucionais não é controvertida, mas as hipóteses de procedência do pedido são relativamente raras, tanto no direito comparado como na experiência brasileira20.

21. O controle de constitucionalidade, nas hipóteses de limitação material do poder de reforma (CF, art. 60, § 4º)21, remete às assim denominadas cláusulas pétreas. Em nome da estabilidade da ordem constitucional e da preservação de valores fundamentais, impõe-se uma restrição absoluta à regra majoritária, expressão do princípio democrático. Há razões históricas consistentes que legitimam a proteção de certas decisões estruturantes tomadas pelo constituinte originário, cuja supressão alteraria radicalmente o modelo de Estado que pretendeu instituir. Nada obstante, a interpretação destas cláusulas deve ser feita sem elastecer-se o seu sentido e alcance, por duas razões que aqui se destacam:

a) não se deve sufocar o espaço de conformação reservado à deliberação democrática, exacerbando a atuação contramajoritária do Judiciário;

b) não se deve engessar o texto constitucional, impedindo sua adaptação a novas demandas sociais legítimas, o que obrigaria à convocação repetida e desestabilizadora do poder constituinte originário22.

22. Há ainda uma última nota a fazer neste particular. A observação panorâmica das cláusulas pétreas consagradas nas Constituições dos países democráticos revela que, em geral, elas veiculam princípios fundamentais e, menos freqüentemente, regras que representam concretizações diretas desses princípios. Não se trata, portanto, de proibições pontuais, destinadas a conservar um determinado status quo e restringir caprichosamente a deliberação democrática23.  

23. A predominância de princípios no elenco de cláusulas pétreas não deve ser considerada casual. Essas normas são caracterizadas pela relativa indeterminação do seu conteúdo. De fato, os princípios, em geral, têm um núcleo de sentido, em cujo âmbito funcionam como regras, i.e., prescrevem objetivamente determinadas condutas. Para além desse núcleo, existe um espaço de conformação, cujo preenchimento é atribuído prioritariamente aos órgãos de deliberação majoritária, por força do princípio democrático24. Aí já não caberia mais ao Judiciário impor sua visão do que seria a concretização ideal de determinado princípio25.   

24. A tese de que o que está protegido é o conteúdo nuclear dos princípios encontra amparo, igualmente, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ainda sob a égide da Constituição de 1967, com as alterações da Emenda nº 1, de 1969, foi seguida no julgamento do MS 20.257-DF26. Mais recentemente, já sob o influxo democrático da Constituição de 1988, a Corte teve oportunidade de reafirmar o argumento, de forma conceitual e lapidar, por ocasião do julgamento da ADInMC nº 2.024-DF, relatada pelo Min. Sepúlveda Pertence, de cujo voto se extrai a seguinte passagem:  

Não são tipos ideais de princípios e instituições que é lícito supor tenha a Constituição tido a pretensão de tornar imutáveis, mas sim as decisões políticas fundamentais, freqüentemente compromissórias, que se materializaram no seu texto positivo.  

O resto é metafísica ideológica.  

(...)  

A afirmação então reiterada de que os limites materiais à reforma constitucional – as já populares “cláusulas pétreas” – não são garantias de intangibilidade de literalidade de preceitos constitucionais específicos da Constituição originária – que, assim, se tornariam imutáveis – mas sim do seu conteúdo nuclear é da opinião comum dos doutores (cf., v.g., Nelson S. Sampaio, O poder de reforma constitucional, 3ª ed., p. 87; Jorge Miranda, Manual Dir. Constitucional, 2ª ed., 1983, II/189; Klaus Stern, Derecho Del Estado de la RFA, trad, Madrid 1987, p. 342 ss; Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., p. 1138; Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua Reserva de Justiça, Saraiva, 1999, p. 222 e ss)27.

25. Note-se que esse entendimento é amplamente dominante no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais – CF, art. 60, § 4º, IV. Com muito maior razão deverá prevalecer quando se trate da separação de Poderes e da federação, temas em discussão na ADIn referida inicialmente, sobre os quais se tratará na seqüência. Embora os direitos fundamentais integrem o rol de cláusulas pétreas da Constituição brasileira, bem como da imensa maioria de outras Cartas, doutrina28 e jurisprudência29 admitem sem dificuldades a possibilidade de limitação de seu conteúdo, até mesmo pelo legislador infraconstitucional, desde que preservado o núcleo essencial dos mesmos. É natural e até mesmo inevitável que seja assim. O mesmo raciocínio aplica-se às demais cláusulas pétreas também veiculadas sob a forma de princípios.  

26. Em suma: as cláusulas pétreas devem ser interpretadas como proibição de supressão do núcleo de sentido dos princípios que consagram, não como a eternização de determinadas possibilidades contidas em sua área não-nuclear, ao lado de outros modelos possíveis. Entendimento diverso esvaziaria o princípio democrático – igualmente uma cláusula pétrea – sobretudo em países como o Brasil, onde uma interpretação ampliativa das limitações materiais ao poder de reforma poderia abranger e cristalizar, como se verá adiante, considerável parcela dos dispositivos constitucionais30.  

27. Como já se mencinou, as impugnações apresentadas pela AMB na ADIn nº 3.367-DF – e que serão examinadas de forma específica na terceira parte deste estudo – envolvem a alegada violação aos princípios da separação de Poderes e da forma federativa de Estado, ambos cláusulas pétreas nos termos do art. 60, § 4º, I e III, da Constituição. Tendo em conta o que se acaba de expor, parece necessário revisitar o sentido essencial dessas cláusulas, para que seja possível apurar, ao fim, se a criação do Conselho Nacional de Justiça vulnera ou não o núcleo de tais princípios.  

IV. O princípio da separação de Poderes

28.  O conteúdo nuclear e histórico do princípio da separação de Poderes pode ser descrito nos seguintes termos: as funções estatais devem ser divididas e atribuídas a órgãos diversos e devem existir mecanismos de controle recíproco entre eles, de modo a proteger os indivíduos contra o abuso potencial de um poder absoluto31. Em interessante decisão, em que examinava a possibilidade de controle judicial dos atos das Comissões Parlamentares de Inquérito, o Supremo Tribunal Federal identificou esse sentido básico da separação de Poderes com a vedação da existência, no âmbito do Estado, de instâncias hegemônicas, que não estejam sujeitas a controle. Vale transcrever trecho do acórdão no qual o tema foi discutido, da lavra do Ministro Celso de Mello:  

A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição. Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal. (...) O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional."32

29. Há, por certo, diversas formas de realizar essas duas concepções básicas – divisão de funções entre órgãos diversos e controles recíprocos – e a experiência histórica dos diferentes países ilustra o ponto. Na experiência brasileira, a doutrina mais autorizada extrai dessas idéias centrais dois corolários33: a especialização funcional e a necessidade de independência orgânica de cada um dos Poderes em face dos demais, os quais, por sua vez, desdobram-se em outras exigências. A especialização funcional inclui a titularidade, por cada Poder, de determinadas competências privativas que, no caso do Judiciário, correspondem ao exercício da função jurisdicional. A independência orgânica demanda, na conformação da experiência presidencialista brasileira atual, três requisitos: (i) uma mesma pessoa não poderá ser membro de mais de um Poder ao mesmo tempo, (ii) um Poder não pode destituir os integrantes de outro por força de uma decisão exclusivamente política34; e (iii) a cada Poder são atribuídas, além de suas funções típicas ou privativas, outras funções (chamadas normalmente de atípicas), como reforço de sua independência frente aos demais Poderes. No caso do Judiciário, como já se referiu acima, essas funções atípicas têm em geral natureza administrativa e relacionam-se com a gestão interna de seus serviços e pessoal.  

30. A partir desses elementos básicos do princípio da separação de Poderes, cada Constituição formula uma enorme quantidade de decisões que visam a concretizá-lo da forma que parece melhor à maioria democrática daquele momento histórico. No caso da Carta de 1988, a disciplina dos poderes públicos, de suas competências e de suas relações recíprocas tem início no art. 37 e a rigor só se encerra no art. 126, afora diversas referências pontuais em outras partes do texto.  

31. Pois bem. Na linha do que já se expôs acima, é evidente que a cláusula pétrea de que trata o art. 60, § 4º, III, não imobiliza os quase 100 (cem)  artigos da Constituição que, direta ou indiretamente, delineiam uma determinada forma de relacionamento entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Muito diversamente, apenas haverá violação à cláusula pétrea da separação de Poderes se o seu conteúdo nuclear de sentido tiver sido afetado. Isto é: em primeiro lugar, se a modificação provocar uma concentração de funções em um poder ou consagrar, na expressão do STF, uma “instância hegemônica de poder”; e, secundariamente, se a inovação introduzida no sistema esvaziar a independência orgânica dos Poderes ou suas competências privativas.  

32. Em suma: o parâmetro de controle com o qual eventuais emendas constitucionais devem ser confrontadas não é composto, por natural, de toda a regulamentação existente na Constituição sobre a separação de Poderes, mas apenas dos elementos essenciais do princípio, na linha descrita acima35. Novas maiorias estão obrigadas a respeitar esse conteúdo nuclear da separação de Poderes, mas não estarão eternamente vinculadas às opções específicas e pontuais formuladas pelo constituinte originário na matéria36.  

V. O princípio da forma federativa de Estado  

33. A federação, como se sabe, é uma forma de organização espacial do poder político pela qual, ao invés de existir um único centro de poder, como nos tradicionais Estados unitários, convivem dois níveis autônomos: o central e o federado. O ente central e os entes federados formam o chamado ente global ou nacional, que vem a ser o Estado federal como um todo37. A forma federativa de Estado procura conciliar o respeito à diversidade própria das entidades políticas menores, e por isso elas detêm autonomia, com elementos de unidade indispensáveis à preservação da integridade nacional. No caso brasileiro, há dois níveis de poder federado – o dos Estados e o dos Municípios – mas essa particularidade não afeta a essência do princípio.  

34. De forma resumida, o princípio da forma federativa de Estado compreende dois conteúdos essenciais: a autonomia dos entes central e locais e a participação deles na formação da vontade do ente global. A autonomia é descrita classicamente como o governo próprio dentro de um círculo que é pré-traçado pelo constituinte originário. Os contornos desse círculo são dados pelas competências atribuídas a cada ente pela Constituição Federal, que envolvem, em geral, competências político-administrativas, legislativas e tributárias, e por normas obrigatórias impostas pelo texto constitucional em benefício da unidade nacional38.  

35. A idéia de participação, por sua vez, é bastante simples: os entes federados devem participar da formação da vontade manifestada pelos órgãos do ente global, isto é: a chamada vontade federal. Adotando a técnica tradicional, o sistema brasileiro assegura aos Estados participação paritária no Senado Federal39. Por força de deliberação expressa do constituinte originário (CF, art. 18), também os Municípios integram a Federação brasileira, sem embargo de desfrutarem de posição institucional mais limitada40. A questão não é relevante para os fins aqui visados, inclusive porque os Municípios não possuem Poder Judiciário.  

36. Da mesma forma como se passa com a separação de Poderes, esses elementos centrais da federação podem ser desenvolvidos e implementados de formas variadas. A experiência brasileira ao longo de sua história republicana e a de outros países confirmam a assertiva. No caso da Constituição de 1988, a federação que se decidiu implementar é estruturada ao longo de várias partes do texto, em particular entre os artigos 18 e 36 e no capítulo do Sistema Tributário, no qual são distribuídas competências e repartidas as receitas entre os entes. É certo, entretanto, e o mesmo raciocínio exposto acima aplica-se aqui, que a cláusula pétrea que protege a forma federativa de Estado não congela todas as disposições que tratam do assunto atualmente existentes no texto constitucional. Uma emenda constitucional apenas será inválida se afetar o núcleo do princípio, isto é: se esvaziar ou restringir substancialmente a autonomia dos entes federativos, em alguma de suas manifestações, ou inviabilizar a participação deles na formação da vontade nacional.  

Parte III  

Exame específico das impugnações e aplicação da teoria à solução da ADIn nº 3.367-DF  

37. Feitos os registros teóricos acima, cabe agora aplicá-los à hipótese em questão. Para isso é preciso, antes de mais nada, expor de forma resumida os argumentos desenvolvidos na ADIn nº 3.367-DF, pelos quais a AMB sustenta que é inconstitucional a criação do Conselho Nacional de Justiça pela EC nº 45/2004.  

VI. Resumo dos argumentos expostos na ADIn nº 3.367-DF  

38. Na petição inicial da ADIn nº 3.367-DF, a AMB deduziu três grandes linhas de fundamentação do seu pedido de declaração de inconstitucionalidade: (i) violação do princípio da separação de Poderes; (ii) violação do princípio federativo; e (iii) inconveniência constitucional da medida. A seguir, o resumo dos argumentos apresentados.  

39. O princípio da separação de Poderes, cláusula pétrea nos termos do art. 60, § 4º, III, da Carta Constitucional, teria sido violado por múltiplas razões. A própria criação de um órgão para exercer “controle externo” do Judiciário violaria o princípio, já que um de seus corolários seria o auto-governo dos Tribunais. Essa violação seria agravada pelo fato de fazerem parte do Conselho indivíduos que não pertencem aos quadros do Judiciário (composição heterogênea) e, mesmo em relação aos magistrados membros do Conselho, a autora da ADIn visualiza dois vícios: magistrados que integram uma Justiça estariam interferindo nas demais Justiças e magistrados de primeiro grau estariam exercendo controle sobre magistrados de instância superior.  

40. Sustenta-se, ademais, que o Conselho Nacional de Justiça representaria uma violação à forma federativa de Estado (CF, art. 60, § 4º, I), pois imporia “uma subordinação hierárquica administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar do Poder Judiciário dos Estados a esse órgão criado perante a União Federal”. Na seqüência, a inicial qualifica o referido Conselho como sendo um “órgão da União Federal, ainda que inserido dentro do Poder Judiciário Federal” (fls. 33). Por fim, o autor da ADIn desenvolve o argumento de que a criação do Conselho Nacional de Justiça pela EC nº 45/2004 seria inválida por conta de uma “inconveniência constitucional (fls. 34), já que haveria superposição entre as competências do Conselho e as de órgãos já existentes, como o Conselho da Justiça Federal.  

41. Na verdade, nenhum dos argumentos merece prevalecer, como decorrência da aplicação direta – e relativamente singela – dos elementos teóricos já explicitados. Os tópicos seguintes ocupam-se de demonstrar essa conclusão por meio do exame específico dos diversos argumentos expostos na petição inicial da ADIn.  

VII. O Conselho Nacional de Justiça não viola o princípio da separação de Poderes  

42. Como resumido acima, sustenta-se na ADIn nº 3.367-DF que a criação do Conselho Nacional de Justiça viola a cláusula pétrea da separação de Poderes por força de um conjunto de argumentos que podem ser organizados em dois grupos: (i) os que alegam que a existência do Conselho em si, com as competências que lhe foram atribuídas, viola a separação de Poderes; e (ii) os que afirmam que a composição do Conselho igualmente viola o princípio, seja porque dele fazem parte indivíduos que não pertencem aos quadros do Poder Judiciário, seja porque magistrados pertencentes a uma Justiça estariam interferindo em outras e juízes de segundo grau estariam em posição de subordinação relativamente a juízes de primeiro grau.  

43. No primeiro grupo, as teses desenvolvidas na inicial são as seguintes: (a) a existência de um órgão destinado a exercer “controle externo” do Judiciário violaria por si só a separação de Poderes; (b) a transferência de atribuições fiscalizatórias e correicionais dos Tribunais para o Conselho, bem como a possibilidade de o órgão avocar processos administrativos, violaria o princípio, pois o autogoverno dos Tribunais seria da essência da separação de Poderes; e (c) a competência específica de “requisitar ou designar magistrados, delegando-lhes atribuições” violaria a separação de Poderes pois esvaziaria a garantia da inamovibilidade41.  

44. Antes de examinar os argumentos resumidos acima, vale lembrar dois pontos que já foram mencionados neste estudo. Em primeiro lugar, o Conselho Nacional de Justiça, criado pela EC nº 45/2004, é um órgão que integra a estrutura do Poder Judiciário e não de qualquer outro Poder, sendo valioso sublinhar que 3/5 (três quintos) de seus membros são magistrados (a questão da composição do Conselho será objeto de exame adiante). Não é tecnicamente preciso, portanto, referir-se ao Conselho como um órgão de controle externo.  

45. Em segundo lugar, é importante notar que as competências de controle e fiscalização do Conselho envolvem exclusivamente a atuação administrativa dos órgãos do Judiciário. Vale dizer: atividades que não lhe são típicas nem privativas. Por assim ser, não há qualquer questão de especialização funcional em jogo. O Conselho não apenas não é externo ao Judiciário como suas atribuições não se exercem sobre a função jurisdicional de juízes e tribunais. Feito o registro, volta-se ao ponto.  

46. Confrontando os argumentos desenvolvidos na ADIn com o conteúdo essencial do princípio da separação de Poderes, apresentado no capítulo IV desta exposição, é fácil perceber que não se verifica qualquer vulneração na hipótese, e isso por um conjunto consistente de razões. Em primeiro lugar, a existência de um órgão do próprio Judiciário (mesmo que de composição supostamente heterogênea, como se verá) destinado a supervisionar e fiscalizar a atuação administrativa dos membros desse Poder não produz qualquer concentração de poderes: não atribui ao Conselho Nacional de Justiça poderes absolutos nem o transforma em uma “instância hegemônica de poder”. As decisões do Conselho, evidentemente, poderão ser impugnadas judicialmente e a decisão judicial, nesse particular, não caberá ao Conselho, mas a outro órgão do Judiciário42. A rigor, sob essa perspectiva, não houve qualquer modificação no quadro jurídico existente, já que outros órgãos do Judiciário – os Tribunais – já detinham as mesmas competências.  

47. Pela mesma razão, também não sofrem alteração as noções de independência orgânica e especialização funcional. Como referido acima, a discussão sobre especialização funcional sequer é pertinente, já que as competências do Conselho não afetam em qualquer medida o exercício da função jurisdicional. Quanto à independência orgânica, não foram retiradas competências administrativas do Judiciário, muito menos competências essenciais necessárias à garantia de sua independência em face dos demais Poderes. Da mesma sorte, não se conferiu competência alguma ao Executivo ou ao Legislativo, e muito menos alguma capaz de esvaziar a independência do Judiciário. Em suma: não há aqui qualquer violação ao princípio da separação de Poderes.  

48. Com maior quantidade de razões, não se sustenta o argumento de que a transferência para o Conselho de competências fiscalizatórias hoje titularizadas pelos Tribunais violaria a separação de Poderes. Em primeiro lugar, a própria Emenda Constitucional nº 45/2004 registra que as atribuições do Conselho não prejudicam a competência disciplinar e correicional dos Tribunais (art. 103-B, § 4º, III). De toda sorte, o que importa é que a independência orgânica e a autonomia que decorre da separação de Poderes são atribuídas ao Poder Judiciário como um todo em face dos demais Poderes, e não a cada um de seus órgãos em particular, em face de outros órgãos do próprio Judiciário. A forma de organização interna do Judiciário e a distribuição de competências entre seus órgãos pode ser reformulada por emenda constitucional ou por lei, conforme o caso, e os diferentes órgãos atualmente existentes não têm pretensões legítimas de autonomia em face de outros órgãos do mesmo Poder, presentes ou futuros. A questão simplesmente não se encontra no âmbito da discussão sobre a separação de Poderes.  

49. O último argumento desse primeiro grupo dirige-se a uma competência específica: a que autoriza o Conselho a “requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições”. Antes de outras considerações, vale lembrar o que se referiu inicialmente: o intérprete não deve examinar o ato normativo em busca de invalidades. Ao contrário, o juízo de inconstitucionalidade deve ser reservado para hipóteses em que o confronto com a Constituição seja claro e franco, em especial em se tratando de emenda constitucional.  

50. Tendo essa premissa em foco, e considerando, sobretudo, que as atividades a cargo do Conselho Nacional de Justiça têm natureza administrativa, a interpretação mais lógica do dispositivo que prevê a competência em questão é a de que ele autoriza o Conselho a requisitar ou designar magistrados para lhes delegar atribuições administrativas, sem qualquer prejuízo das funções jurisdicionais que cada um deles desempenhe e, portanto, sem qualquer impacto sobre a garantia da inamovibilidade. Aliás, é corriqueiro no dia-a-dia dos Tribunais a designação de magistrados para que, além de suas funções jurisdicionais próprias, assumam também a responsabilidade pela coordenação de determinadas atividades administrativas43.  

51. A interpretação empreendida pela autora da ADIn não supera um exame atento: o magistrado seria retirado pelo Conselho de suas funções jurisdicionais próprias para receber que outras, se o Conselho possui apenas atribuições administrativas? Ter-se-ia um magistrado sem função jurisdicional, isto é, desviado de função e desempenhando apenas atividades administrativas? Essa interpretação não parece decorrer logicamente do texto ou do sistema do Conselho criado pela EC nº 45/2004 e sim de um temor, compreensível, mas que não encontra fundamento no texto da emenda constitucional em discussão.  

52. Cabe agora examinar o segundo grupo de argumentos: aqueles  relacionados com a composição do Conselho. As impugnações aqui são duas. A existência de magistrados de diferentes Justiças e instâncias resultaria numa interferência vedada de uma Justiça sobre outra e de instâncias inferiores sobre superiores. E a existência de indivíduos no Conselho que não são magistrados – no caso: membros da OAB, do Ministério Público e dois cidadãos – violaria igualmente, e por si só, o princípio da separação de Poderes.  

53. Quanto ao primeiro ponto, aplica-se aqui o que já se afirmou acima acerca do destinatário da independência orgânica que decorre do princípio da separação de Poderes. A garantia contra interferências externas é conferida pelo princípio constitucional ao Poder Judiciário em face do Executivo e do Legislativo, não a órgãos do Judiciário em face de outros órgãos do próprio Judiciário, nem de instâncias judiciais superiores em face de instâncias inferiores. O princípio da separação de Poderes simplesmente não se presta a sustentar o argumento desenvolvido. Ademais, parece até intuitivo que um órgão nacional do Judiciário, com funções de supervisão e fiscalização, tenha membros representantes das diferentes Justiças e instâncias.  

54. Na realidade, a tese apresentada na petição inicial da ADIn não tem qualquer ponto de conexão com o tema da separação de Poderes, pois nenhum outro Poder tem qualquer participação na discussão. Trata-se, a rigor, de um debate sobre a conveniência da forma de organização interna dos órgãos do Judiciário no que diz respeito a funções administrativas introduzida pela EC nº 45/2004, e não de uma controvérsia sobre o núcleo da cláusula pétrea que trata da separação de Poderes.  

55. Tampouco procedem, e por um motivo bastante simples, os argumentos que questionam a existência, no Conselho, de membros que não são magistrados. A Constituição é o documento que, em geral, define a composição dos órgãos judiciais instituídos por ela própria, sobretudo daqueles com função jurisdicional (o Conselho da Justiça Federal não tem funções jurisdicionais e, embora previsto pela Carta, tem sua composição fixada em lei). Portanto, nada impede que emenda constitucional modifique essa composição, respeitada apenas a garantia básica da independência orgânica pela qual a mesma pessoa não pode ser membro de mais de um Poder ao mesmo tempo.  

56. Nem existe, no texto original da Carta de 1988 ou no atual, qualquer exclusividade de magistrados de carreira na composição de órgãos do Judiciário. O STF, para indicar apenas um exemplo, é composto, mediante a escolha conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo, de cidadãos que apresentem determinadas características e que não são necessariamente magistrados de carreira. Da Justiça Eleitoral, participam advogados juntamente com magistrados propriamente ditos. Os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais são compostos por magistrados de carreira e indivíduos oriundos dos quadros da OAB e do Ministério Público. Durante muito tempo, representantes de empregados e de empregadores participaram dos órgãos da Justiça do Trabalho. O Tribunal do Júri é composto por um magistrado e por cidadãos. Haveria ainda muitos outros exemplos a citar.  

57. O importante a destacar é que, observada a garantia de que o mesmo indivíduo não seja membro de mais de um Poder ao mesmo tempo, emenda constitucional pode modificar a composição dos órgãos do Judiciário como lhe parecer por bem, não sendo necessário que eles sejam integrados exclusivamente por magistrados de carreira, como, aliás, as formas existentes no texto constitucional ilustram.  

58. É bem de ver que não é plausível o argumento, desenvolvido na inicial, pelo qual se pretende sustentar que membros de outros Poderes comporiam o Conselho. A alegação de que os cidadãos escolhidos para o Conselho pelo Poder Legislativo seriam membros desse Poder, não se sustenta. A fórmula pela qual Executivo e Legislativo participam da escolha de membros de órgãos do Judiciário faz parte da lógica dos controles recíprocos e é amplamente empregada pelo texto constitucional, sem que jamais se tenha cogitado de que os Ministros do Supremo Tribunal Federal, e.g., integrem o Executivo e/ou o Legislativo pelo fato de terem sido nomeados pelo Presidente com a aprovação do Senado Federal.  

59. Diga-se o mesmo da alegação de que o Conselho contaria com a participação de integrantes do Poder Executivo. Afora os cidadãos, os demais membros de origem externa são dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da OAB, e dois representantes do Ministério Público, um da União e outro dos Estados, escolhidos pelo Procurador-Geral da República, sendo relevante sublinhar que os dois grupos – advogados e membros do Ministério Público – foram enquadrados pela Constituição na categoria de funções essenciais à Justiça. Embora a observação não seja, a rigor, relevante, vale notar que o Chefe do Poder Executivo não tem qualquer participação na escolha de tais nomes, cabendo-lhe apenas nomear os indivíduos escolhidos segundo a sistemática do art. 103-B. Os advogados, evidentemente, não integram o Poder Executivo. Quanto ao Ministério Público, a Carta de 1988 conferiu-lhe garantias substanciais e dotou-lhe de orçamento próprio, que lhe asseguram ampla autonomia, mesmo porque, muito freqüentemente, sua atuação volta-se contra atos do Executivo44. Assim, também não é correto afirmar que os membros do Ministério Público seriam membros do Poder Executivo e muito menos que a presença de membros do Ministério Público no Conselho violaria a separação de poderes45.  

60. Quanto à participação de cidadãos no Conselho, há ainda um elemento adicional a destacar. Pelas razões já apresentadas, nada impede que cidadãos em geral componham órgãos do Poder Judiciário, inclusive com funções jurisdicionais, como é o caso do júri. Nada obstante, no caso de um órgão com funções de fiscalização e supervisão administrativas de um dos Poderes estatais, há, adicionalmente, todo um conjunto de princípios e regras constitucionais que prestigia a participação dos cidadãos na gestão e no controle da atividade administrativa. O ponto já foi desenvolvido na primeira parte deste estudo e não há necessidade de reproduzi-lo (v. capítulo II, parte final).  

61. Uma última observação a ser feita sobre a discussão da separação de Poderes envolve os precedentes citados na petição inicial, nos quais o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a criação, no âmbito dos Estados-membros, de órgãos de controle externo do Judiciário e que, segundo a autora da ADIn, seriam similares ao Conselho Nacional de Justiça. Os precedentes, entretanto, não são aplicáveis ao caso, e isso por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque o poder constituinte decorrente atribuído aos Estados está subordinado a um conjunto de limitações bastante amplo, não oponível ao poder constituinte derivado, exercido pelo Congresso Nacional. A impossibilidade de os Estados membros tratarem da matéria em questão foi um dos principais argumentos discutidos em tais casos. Em segundo lugar, as inovações criadas pelos Estados não se confundem com o Conselho Nacional de Justiça, distinguindo-se dele em aspectos relevantes. Não parece este o local adequado para desenvolver essa comparação, mas o exame de cada uma das normas estaduais consideradas inválidas e da EC nº 45/2004 demonstra o ponto46.

VIII. O Conselho Nacional de Justiça não viola o princípio federativo

62. Afora os diversos argumentos envolvendo a separação de Poderes, a inicial sustenta ainda que a criação do Conselho Nacional de Justiça violaria o princípio federativo por impor “uma subordinação hierárquica administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar do Poder Judiciário dos Estados a esse órgão criado perante a União Federal”. Aqui é preciso um esclarecimento importante.  

63. Como registrado acima, convivem em um Estado Federal três fenômenos diversos: o ente central, os entes locais e o ente global ou nacional, composto dos dois primeiros. No âmbito de um Estado Federal, portanto, há normas e órgãos nacionais e normas e órgãos próprios do ente central ou dos entes locais. De acordo com a Constituição de 1988, por exemplo, o ente central e os entes locais têm competência para expedir normas sobre o regime jurídico de seus servidores e para instituir seus tributos. O Código Civil, entretanto, é uma norma nacional, que vincula tanto o ente central como os locais. Nesse contexto, embora o Judiciário conte com órgãos estaduais, a Constituição estabelece igualmente não apenas órgãos nacionais – como os Tribunais Superiores (art. 92, § 2º) – mas também princípios nacionais e uma competência legislativa de caráter nacional, que deve regular de maneira uniforme o Poder Judiciário como um todo47. Com efeito, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/79) é um exemplo típico de lei nacional.  

64. Ora bem: o Conselho Nacional de Justiça, criado pela EC nº 45/2004, é um órgão nacional integrante da estrutura do Judiciário – tanto assim que dele fazem parte membros de órgãos judiciários estaduais –, e não um órgão do ente central ou dos entes locais. O pressuposto da alegação formulada na inicial – de que o Conselho seria um órgão da União que estaria a interferir com as Justiças estaduais – simplesmente não corresponde à realidade. De toda sorte, e em qualquer caso, não se cogita aqui de qualquer esvaziamento da autonomia atribuída aos entes federados ou de restrição a sua participação na formação da vontade nacional, elementos essenciais do princípio da forma federativa de Estado, como exposto acima.  

IX. Suposta “inconveniência” não é fundamento válido para a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional  

65. Por fim, a ADIn sustenta a inconstitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça sob um fundamento que denomina “inconveniência constitucional de existência do Conselho Nacional de Justiça” (fls. 34). O argumento baseia-se na afirmação de que o órgão deteria competências já atribuídas ao Conselho da Justiça Federal e agora conferidas ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, este último criado pela própria Emenda Constitucional nº 45. Haveria, no caso, “um manifesto conflito de competências”.

66. O ponto não necessita de maiores divagações. A conveniência ou inconveniência da inovação introduzida pela emenda constitucional não é um parâmetro válido de controle de constitucionalidade em geral, e muito menos constitui uma cláusula pétrea capaz de eivar de invalidade emenda constitucional. Todo cidadão, incluindo naturalmente os magistrados, está livre para desenvolver sua própria convicção acerca do tema e manifestá-la nos fóruns próprios do debate democrático. Aliás, mesmo após a aprovação da emenda, o direito de crítica permanece e pode ser exercitado livremente. Entretanto, é imperativo distinguir bem os espaços da crítica política e da atividade jurídica de controle de constitucionalidade. Simplesmente não é legítimo ao Judiciário pretender substituir o juízo de conveniência formulado pelo poder constituinte derivado, manifestado após amplo debate popular e parlamentar sobre o assunto, pelo seu próprio juízo de conveniência. Este não é o seu papel. 

Conclusões

67. À vista de tudo o que foi exposto, é possível compendiar as idéias centrais desenvolvidas no presente estudo nas seguinte proposições objetivas:

A. O paradigma do controle de constitucionalidade aplicável às emendas constitucionais envolve apenas o conjunto de cláusulas pétreas instituídas pelo constituinte originário. A necessidade de convivência harmoniosa entre duas necessidades fundamentais – preservar consensos básicos consagrados pela Constituição e assegurar o espaço próprio da deliberação democrática majoritária – exige que as cláusulas pétreas sejam interpretadas como a proibição de esvaziamento do seu sentido essencial ou nuclear, sobretudo quando veiculem princípios, e não como a eternização de um determinado modelo concreto de organização estatal, sob pena de cristalizar-se praticamente todo o texto constitucional. 

B. Sustenta-se na ADIn nº 3.367-7 que a criação do Conselho Nacional de Justiça violaria os princípios da separação dos Poderes e da forma federativa de Estado, além de ser institucionalmente inconveniente. Estes argumentos não devem prevalecer, pelas razões abaixo:  

a) O Conselho Nacional de Justiça não viola o princípio da separação de Poderes. O princípio tem como sentido básico a repartição das funções estatais entre diferentes centros de competência – Poderes –, de modo que haja controle recíproco entre eles. Por isso, atribuem-se-lhes competências privativas (especialização funcional) e garantias que assegurem a independência de cada um dos Poderes em face dos demais (independência orgânica). O Conselho Nacional de Justiça é órgão do próprio Judiciário, não de outro Poder, e suas atividades dizem respeito à fiscalização e à supervisão de atividades administrativas, não da atividade privativa do Judiciário. O princípio da separação de Poderes não serve de fundamento para pretensões envolvendo a organização interna de cada Poder e a distribuição de atribuições entre órgãos de um mesmo Poder. Não há aqui, portanto, qualquer vulneração à cláusula pétrea em questão.

b) O Conselho Nacional de Justiça é órgão nacional e não do ente central ou de qualquer dos entes locais, de modo que não há subordinação das estruturas estaduais do Judiciário a um órgão do ente central. De toda sorte, o conteúdo essencial do princípio da forma federativa de Estado relaciona-se com a autonomia dos entes federados – definida pela Constituição Federal – e com a participação deles na formação da vontade dos órgãos nacionais, elementos que em nada são afetados pela criação do Conselho Nacional de Justiça.

c) A suposta inconveniência da inovação introduzida pela EC nº 45/2004 não é um parâmetro válido de controle de constitucionalidade em geral e muito menos constitui uma cláusula pétrea capaz de eivar de invalidade emenda constitucional.

ANEXO

Art. 103-b da Constituição Federal, acrescentado pela EC 45/04:

"Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:

I. um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal;  

II. um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;  

III. um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;  

IV. um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;  

V.  um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;  

VI. um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;  

VII. um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;  

VIII. um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;  

IX. um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;  

X. um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República;  

XI. um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual;  

XII. dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII. dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.  

§ 1º O Conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate, ficando excluído da distribuição de processos naquele tribunal.  

§ 2º Os membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.  

§ 3º Não efetuadas, no prazo legal, as indicações previstas neste artigo, caberá a escolha ao Supremo Tribunal Federal.  

§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:  

I. zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;  

II. zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;  

III. receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;  

IV. representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;  

V. rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;  

VI. elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;  

VII. elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.  

§ 5º O Ministro do Superior Tribunal de Justiça exercerá a função de Ministro-Corregedor e ficará excluído da distribuição de processos no Tribunal, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura, as seguintes:  

I. receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários;  

II. exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral;  

III. requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.  

§ 6º Junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.  

§ 7º A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”.



1A íntegra do art. 103-B da Constituição, introduzido pela EC 45/04, encontra-se ao final do texto, como anexo.
2M. Seabra Fagundes, em seu clássico O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1984, pp. 4-13, diferencia as funções jurisdicional e administrativa nos seguintes termos: “O procedimento do Estado, por meio da função jurisdicional, muito se assemelha, como elemento de individualização da lei, ao que é praticado por meio da função administrativa. A função jurisdicional, tanto quanto a administrativa, determina ou define situações jurídicas individuais. À primeira vista ela se confundiria com a Administração como função realizadora do direito, pois que o ato jurisdicional é tipicamente um ato de realização do direito pela individualização da lei. Expressa a vontade do Estado, pelo preceito normativo, todos os atos destinados a fazê-la são, sem dúvida, atos de execução, quer os que aparecem como resultado do exercício da função administrativa, quer os decorrentes da atividade jurisdicional. Mas o momento em que é chamada a intervir a função jurisdicional, o modo e a finalidade, por que interfere no processo realizador do direito, é que lhe dão os caracteres diferentes. O seu exercício só tem lugar quando exista conflito a respeito da aplicação das normas de direito, tem por objetivo específico removê-lo, e alcança a sua finalidade pela fixação definitiva da exegese”.  
3Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2003, p. 31: "Com efeito, ninguém duvida que o Poder Legislativo, além dos atos tipicamente seus, quais os de fazer leis, pratica atos notoriamente administrativos, isto é, que não são nem gerais, nem abstratos e que não inovam inicialmente na ordem jurídica (por exemplo, quando realiza licitações ou promove seus servidores) e que o Poder Judiciário, de fora parte proceder a julgamentos, como é de sua específica atribuição, pratica estes mesmos atos administrativos a que se fez referência".  
4CF/88, art. 95: “Os juízes gozam das seguintes garantias: I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153
, III, e 153, § 2º, I”.  
5Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. I, 2002, pp. 353-4: “Não obstante essa íntima relação [entre direito processual e organização judiciária], em si mesma a organização judiciária tem natureza preponderantemente administrativa. As normas que a regem integram o direito administrativo da Justiça e das instituições judiciária. Têm por objeto a disciplina destas e das relações entre o juiz e o Estado. Aqui não se trata, como em direito processual, das relações entre Estado-juiz e os sujeitos litigantes – mas entre o Estado e esse corpo orgânico que é a Magistratura. Lá os juízes aparecem como meros agentes impessoais do Estado, no exercício de atividades que este só pode exercer mediante a atuação de pessoas físicas (supra, n. 129); aqui, como sujeitos de deveres, ônus, faculdades, prerrogativas e direitos, bem como destinatários de garantias e impedimentos”.  

6Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 111: “O princípio da dignidade exprime, por outro lado, a primazia da pessoa humana sobre o Estado. A consagração do princípio importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção dos seus direitos fundamentais”.  

7Há disposição expressa de lei nesse sentido, em âmbito federal. Trata-se da Lei nº 9.784/99, cujos artigos 1º e 2º assim dispõem: "Art. 1º. Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.
§ 1º. Os preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa. Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência". Tampouco é controversa a aplicabilidade dos referidos princípios aos demais entes federativos, decorrente diretamente da Constituição.
 
8CF/88, art. 37, § 3º: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”.  
9CF/88, art. 5º, LXXIII: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucum
bência;”.  
10CF/88, art. 127: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.  

11CF/88, art. 129: “São funções essenciais do Ministério Público: (...) II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços públicos de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”.  
12STJ, DJ 9.11.98, p. 55, REsp 180.350-SP, Rel. Min. Garcia Vieira: “O Ministério Público é legitimado a propor ação civil pública, visando à decretação de nulidade de concurso público que afrontou os princípios de acessibilidade, legalidade e moralidade”. 

13O tema é objeto de volumosa literatura nos Estados Unidos. Vejam-se, exemplificativamente: John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980; Alexander M. Bickel, The least dangerous branch, 1986; Charles Black Jr., The people and the court, 1960; Herbert Wechsler, Towards neutral principles of constitutional law, Harvard Law Review, 73:1, 1959; Robert Bork, Neutral principles and some first amendment problems, Indiana Law Journal, 47:1, 1971; Bruce Ackerman, Beyond Carolene Products, Harvard Law Review, 98, 1985; Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Edwin Meese III, The law of the Constitution, Tulane Law Review, 61:979, 1987; Rebecca I. Brown, Accountability, liberty, and the Constitution, Columbia Law Review, 98:531, 1998. Na doutrina européia, vejam-se: Robert Alexy, Teoría de la argumentación jurídica, 1997; Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre faticidade e validade, 2 vs., 1997; Peter Häberle, Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, 1997; Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el tribunal constitucional, 1991. No Brasil, vejam-se: Willis Santiago Guerra Filho, Derechos fundamentales, proceso y principio de la proprocionalidad, Separata de Ciência Tomista, Salamanca, t. 124, n. 404, 1997; Oscar Vilhena Vieira, A constituição e sua reserva de justiça, 1999; Cláudio Pereira de Souza Neto, Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, 2002; José Adércio Leite Sampaio, A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, 2002, p. 60 e ss. (“Discurso de legitimidade da jurisdição constitucional e as mudanças legais do regime de constitucionalidade no Brasil”); Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001.  
14Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, v. 1, 1999, p. 257. Sobre outros aspectos da relação entre constitucionalismo e democracia, como a noção de liberdade e os conceitos de povo, soberania e Estado, veja-se o mesmo livro, p. 256 e ss..  
15Sobre o assunto, veja-se: John H. Ely, Democracy and distrust. A theory of judicial review, 1980; Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 1985, p. 209 e ss.; Alexander M. Bickel, The least dangerous branch, 1986; J. C. Vieira de Andrade, “Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional – Colóquio no 10º aniversário do Tribunal Constitucional, 1995, p. 80 e ss.; e Francisco Lucas Pires, “Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria”. In: Legitimidade e legitimação da justiça constitucional – Colóquio no 10º aniversário do Tribunal Constitucional, 1995, p. 167 e ss..  

16Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política ou valorativa.

17A participação popular, os meios de comunicação social, a opinião pública, as demandas dos grupos de pressão e dos movimentos sociais imprimem à política e à legislação uma dinâmica própria e exigem representatividade e legitimidade corrente do poder. Sobre estas questões, v., em meio a muitos outros, Landelino Lavilla, “Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion constitucional y poder legislativo”. In: Antonio Lopes Pina (org.)Division de poderes e interpretacion – Hacia una teoria de la praxia constitucional, 1997, pp. 58-72; Tomás de la Quadra, Antonio La Pergola, Antonio Hernández Gil, Jorge Rodríguez-Zapata, Gustavo Zagrebelsky, Francisco P. Bonifacio, Erhardo Denninger e Conrado Hesse, “Metodos y criterios de interpretacion de la Constitución”. In: Antonio Lopes Pina (org.), Division de poderes e interpretacion – Hacia una teoria de la praxis constitucional, 1997, p. 134; J. J. Gomes Canotilho, Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo, RT-CDCCP, 15:7, 1996; e Francisco Fernández Segado, La teoría jurídica de los derechos fundamentales en la Constitución Española de 1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional, RILSF, 121:77, 1994.  
18Não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente considerar-se a norma como válida, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade. Além disso, havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.
19Para uma análise abrangente da doutrina e jurisprudência relativas ao princípio, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, onde se lavrou, na p. 177: “A declaração de inconstitucionalidade de um norma, em qualquer caso, é atividade a ser exercida com auto-limitação pelo Judiciário, devido à deferência e ao respeito que deve ter em relação aos demais Poderes. A atribuição institucional de dizer a última palavra sobre a interpretação de uma norma não o dispensa de considerar as possibilidades legítimas de interpretação pelos outros Poderes. No tocante ao controle de constitucionalidade por ação direta, a atuação do Judiciário deverá ser ainda mais contida. É que, nesse caso, além da excepcionalidade de rever atos de outros Poderes, o Judiciário desempenha função atípica, sem cunho jurisdicional, pelo que deve atuar parcimoniosamente”.

20Para um histórico da questão na jurisprudência norte-americana e alemã, v. Gilmar Ferreira Mendes, Plebiscito – EC 2/92, RTDP, 7:105, 1994. O autor demonstra que ambas as Cortes Constitucionais admitem, em tese, a possibilidade de controlar a constitucionalidade material de emendas à Constituição, mas que, na prática, a hipótese é excepcional. No Brasil existem alguns poucos precedentes, dentre os quais: em relação à EC nº 3/93, STF, RTJ 151:175: “A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.93, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III, ‘b’ e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (...)“; em relação à EC nº 41/03, STF, Inf. STF 357: “De outro lado, em relação ao parágrafo único do art. 4º da norma impugnada,entendeu-se configurada a violação ao princípio da igualdade por estes fundamentos (...)“.
   
21CF/88, art. 60, § 4º: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”.
22Sobre o ponto, v. Gilmar Ferreira Mendes, Plebiscito – EC 2/92, RTDP 7:105, 1994, p. 118: “Não só a formulação ampla dessas cláusulas, mas também a possibilidade de que por meio de uma interpretação compreensiva diferentes disposições constitucionais possam (ou devam) ser imantadas com a garantia da imutabilidade têm levado doutrina e jurisprudência a advertir contra o perigo de um congelamento do sistema constitucional, que, ao invés de contribuir para a continuidade da ordem constitucional, acabaria por antecipar sua ruptura”.
23Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua reserva de justiça, 1999, p. 230: “Como na imagem de Ulisses, os pré-comprometimentos constitucionais, assumidos a partir da adoção de cláusulas superconstitucionais, só serão legítimos se formulados de maneira a habilitar a continuação da jornada da sociedade, por intermédio dos caminhos traçados pelos seus próprios cidadãos, sob condições ideais de deliberação. Os princípios a serem protegidos do poder constituinte reformador, por intermédio de cláusulas superconstitucionais, devem constituir a reserva básica de justiça constitucional de um sistema, um núcleo básico que organize os procedimentos democráticos, como mecanismo de realização da igualdade política e do qual possam ser derivadas as liberdades, garantias legais, inclusive institucionais, e os direitos às condições materiais básicas. Mais do que isso, as cláusulas superconstitucionais seriam uma pretensiosa usurpação da autonomia de cada geração por aqueles que elaboraram o documento constitucional. Menos do que isso, essas cláusulas seriam insuficientes”.  
24Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, “O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro”. In: Luís Roberto Barroso (org.), A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 341: “Um princípio tem um sentido e alcance mínimos, um núcleo essencial, no qual se equiparam às regras. A partir de determinado ponto, no entanto, ingressa-se em um espaço de indeterminação, no qual a demarcação de seu conteúdo estará sujeita à concepção ideológica ou filosófica do intérprete. Essa característica dos princípios, aliás, é que permite que a norma se adapte, ao longo do tempo, a diferentes realidades, além de permitir a concretização do princípio da maioria, inerente ao regime democrático. Há um sentido mínimo, oponível a qualquer grupo que venha a exercer o poder, e também um espaço cujo conteúdo será preenchido pela deliberação democrática”.
25Nesse mesmo sentido, confiram-se, exemplificativamente, J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 2003, p. 1.069: “De qualquer modo, a inaceitabilidade da dupla revisão não é um elemento impeditivo de alterações substanciais, constitucionalmente legítimas. Os limites materiais devem considerar-se com garantias de determinados princípios, independentemente da sua concreta expressão constitucional, e não como garantias de cada princípio na formulação concreta que tem na Constituição”; Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua reserva de justiça, 1999, p. 247: “Interpretadas adequadamente, as cláusulas superconstitucionais não constituirão obstáculo à democracia, mas servirão como mecanismos que, num momento de reformulação da ordem constitucional, permitirão a continuidade e o aperfeiçoamento do sistema constitucional democrático, habilitando cada geração a escolher seu próprio destino sem, no entanto, estar constitucionalmente autorizada a furtar esse mesmo direito às gerações futuras”; e Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 2004, p. 389:
“A garantia de determinados conteúdos da Constituição por meio da previsão das assim denominadas ‘cláusulas pétreas’ assume, desde logo, uma dúplice função, já que protege os conteúdos que compõem a identidade e estrutura essenciais da Constituição, proteção esta que, todavia, assegura estes conteúdos apenas na sua essência, não se opondo a desenvolvimentos ou modificações que preservem os princípios neles contidos”.
26A questão concreta subjacente, como se extrai da transcrição a seguir, revela as agruras políticas da época. Mas a tese jurídica era a de que o núcleo do princípio teria permanecido incólume. STF, DJ 06.02.81, Rel. originário Min. Cordeiro Guerra, Rel. p/ o acórdão Min. Moreira Alves: “A emenda constitucional, em causa, não viola, evidentemente, a república, que pressupõe a temporariedade dos mandatos eletivos. De feito, prorrogar mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato, como sustentam os impetrantes, sob a alegação de que, a admitir-se qualquer prorrogação, ínfima que fosse, estar-se-ia a admitir prorrogação por vinte, trinta ou mais anos. Julga-se à vista do fato concreto, e não de suposição, que, se vier a concretizar-se, merecerá, então, julgamento para aferir-se da existência, ou não, de fraude à proibição constitucional”.
 
27STF, DJ 01.12.00, p. 70, ADInMC 2.024-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.  
28Ana Paula de Barcellos, A técnica da ponderação: metodologia e parâmetros jurídicos, 2005 (no prelo). No mesmo sentido, v., dentre outros, Wilson Antônio Steinmetz, Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, 2001, p. 60 e ss.; Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade e direitos fundamentais, 1998, p. 34 e ss.; e Luís Roberto Barroso, “Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e critérios de ponderação”. In: Idem, Temas de direito constitucional, v. III, 2005 (no prelo).  
29Nesse sentido, a título de exemplo, STF, DJ 12.05.2000, MS 23452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello: “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto”.  
30Nagib Slaibi Filho, Direito constitucional, 2004, p. 47: “As mencionadas cláusulas pétreas foram tão ampliadas pela nova Constituição (até então, seguindo-se o modelo estadunidense, as cláusulas pétreas restringiam-se à República e à Federação) que os quatro temas hoje (e principalmente os direitos e garantias individuais) são encontrados em toda a Constituição: assim, interpretação mais extensa inibiria completamente o poder de emenda. E imobilizar o poder de reforma, na feliz expressão de Paulo Bonavides, é correr todos os caminhos para a revolução, isto é, a ruptura violenta da ordem constitucional”.
31Nuno Piçarra, A separação dos Poderes como doutrina e princípio constitucional – Um contributo para o estudo das suas origens e evolução, 1989, p. 26: “Na sua dimensão orgânico-funcional, o princípio da separação dos Poderes deve continuar a ser encarado como princípio de moderação, racionalização e limitação do poder político-estadual no interesse da liberdade. Tal constitui seguramente o seu núcleo intangível”.
32STF, MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.05.00.  
33Sobre o ponto, v. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 2001, p. 113.
34Note-se a propósito que a destituição do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade é um processo de natureza político-administrativa pautado por regras constitucionais e legais, cuja observância é sindicável judicialmente. A Constituição trata diretamente do tema nos artigos 85 e 86. No plano infraconstitucional, a matéria vem disciplinada na Lei nº 1.079/50, aplicável ao Presidente da República e aos Governadores, bem como aos Ministros e Secretários de Estado, e no Decreto-lei nº 201/67, referente aos Prefeitos e Vereadores.
35Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua reserva de justiça, 1999, p. 235: “Uma segunda tentação que deve ser evitada quando se controla a constitucionalidade de emendas à Constituição é buscar densificar os princípios abertos do texto exclusivamente a partir de dispositivos específicos da própria Constituição, que dão concretude constitucional aos princípios. Ainda que esse modelo de interpretação de princípios constitucionais – conforme os dispositivos mais concretos da Constituição – possa ser satisfatório para o processo de controle da constitucionalidade das leis, dificilmente o será para a atividade de controle de emendas à Constituição. Se as emendas servem para corrigir e melhorar o texto da Constituição, estas não podem ter como limite todas as letras desse mesmo texto”.
36Um exemplo recente da atuação do poder constituinte derivado nesse particular foi a EC nº 32/01, que restringiu a competência do Chefe do Poder Executivo para editar medidas provisórias. O exemplo é interessante, pois
a atividade legislativa do Poder Executivo integra o espaço de interseção entre os Poderes, afetando a função atribuída tipicamente a outro Poder, no caso, o Legislativo.
37Hans Kelsen, Teoria do direito e do Estado, 1998, p. 452: “As normas centrais formam uma ordem jurídica central por meio da qual é constituída uma comunidade jurídica central parcial que abarca todos os indivíduos residentes dentro do Estado federal. Essa comunidade parcial constituída pela ordem jurídica central é a ‘federação’. Ela é parte da ordem jurídica total do Estado federal. As normas locais, válidas apenas para partes definidas do território inteiro, formam ordens jurídicas locais por meio das quais são constituídas comunidades jurídicas parciais. Cada comunidade jurídica parcial abrange os indivíduos residentes dentro de um desses territórios parciais. Essas unidades jurídicas parciais são os Estados ‘componentes’. Desse modo, cada indivíduo pertence, simultaneamente, a um Estado componente e à federação. O Estado federal, a comunidade jurídica total, consiste, assim, na federação, uma comunidade jurídica central, e nos Estados componentes, várias comunidades jurídicas locais. A teoria tradicional identifica, erroneamente, a federação com o Estado federal total”.
38A autonomia, como é corrente, realiza-se nas idéias de auto-organização – o poder de elaborar sua própria Constituição e sua organização básica –, autogoverno – capacidade de exercer o poder por órgãos próprios, cujos ocupantes são escolhidos no âmbito do próprio ente – e auto-administração – faculdade de dar execução a suas próprias normas e prestar os serviços de sua competência.
39Também se insere nesse arranjo institucional a possibilidade de as Assembléias Legislativas estaduais apresentarem proposta de emenda constitucional (CF, art. 60, III), competência que, na prática, não adquiriu expressão.
40Além de não terem Poder Judiciário, os Municípios não têm representação federal e sua criação, incorporação e fusão fazem-se por lei estadual (CF, art. 18, § 4º).
41A impugnação de outras competências específicas que consta da petição inicial se confunde na verdade com a alegação de que elas não poderiam ser atribuídas cumulativamente a órgãos diversos dos Tribunais, tema que já foi examinado no texto. Apenas a competência de requisitar ou designar magistrados poderia suscitar alguma dúvida de natureza diversa.
42A própria EC 45/04 dispôs a respeito, atribuindo competência ao STF para conhecer das eventuais demandas que venham a ser propostas contra atos do Conselho. V. CF/88, art. 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal: I – processar e julgar, originariamente: (...) r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho Nacional do Ministério Público”. (alínea acrescentada pela EC 45/04).
43Na verdade, nem mesmo a convocação de magistrados para o exercício de funções tipicamente jurisdicionais é estranha à praxe forense. No âmbito do Tribunal Federal da 2ª Região, e.g., existe a seguinte disposição regimental: “Art. 59. Em caso de vaga ou de afastamento de Juiz do Tribunal por prazo superior a 30 (trinta) dias, poderá ser convocado Juiz Federal para substituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Plenário, observando-se o disposto no art. 118 da Lei Complementar nº 35/79”. Em suma, não há nenhum motivo para imaginar que a convocação venha a se converter em ato de violência, contrariando a prática consolidada no país.
44Sobre o assunto, veja-se trecho de manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence: “Garantida efetivamente a sua independência (...) a colocação constitucional do Ministério Público é secundária, de interesse quase meramente teórico. 78. A essa visão do problema, buscou atender, e atendeu em grande parte, a Constituição vigente: deixou à especulação doutrinária a ponderação sobre a natureza material das suas funções institucionais, mas se esforçou de dotar a instituição de garantias inéditas de autonomia administrativa e de independência funcional, seja a do organismo, globalmente considerado, seja a dos seus membros, individualmente. 79. Nesse contexto constitucional, situar o Ministério Público, a partir de suas funções, como componente do Poder Executivo - como é a minha opinião pessoal -, é conclusão que muito pouco tem a ver com o reconhecimento de poderes administrativos do Presidente da República sobre a instituição" (STF, RTJ 147:104, MS 21.239, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).  
45Ao contrário, parece natural que qualquer órgão de controle da atuação administrativa conte com a participação de advogados e membros do Ministério Público, como sublinha o Ministro Carlos Velloso: “Não considero nem o advogado nem o representante do Ministério Público elementos estranhos ao Poder Judiciário. É que o Ministério Público é considerado, pela Constituição, instituição essencial à função jurisdicional (C.F., art. 127), enquanto que o advogado, segundo dispõe o art. 133 da Constituição, é indispensável à administração da Justiça. Nenhum tribunal funciona e nenhum juiz decide sem a participação do advogado. Juízes, advogados e membros do Ministério Público estamos todos empenhados no distribuir justiça, integramos uma mesma instituição, fazemos parte de uma mesma família. Creio, por isso mesmo, que estaria justificada a participação, no Conselho, do advogado e do promotor, aquele como membro do Conselho, o Ministério Público, pelo seu chefe, o procurador-geral, nele oficiando, exercendo a função de fiscal da lei”. (O controle externo do Poder Judiciário, Revista Direito e Justiça nº 116, 1994, p. 4).
46Apenas para ilustrar a afirmação, lembre-se que as normas estaduais em questão ora não definiam a composição dos respectivos Conselhos, remetendo a decisão ao legislador ordinário, ora previam ampla ingerência de membros dos Poderes Executivo e Legislativo, em maioria em relação aos integrantes oriundos do próprio Judiciário. Não há, portanto, como comparar modelos tão díspares.
47Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, v. I, 2002, p. 368: “Embora haja órgãos e organismos federais e estaduais predispostos ao exercício da jurisdição, isso não significa que exista uma suposta jurisdição estadual. Constitui antigo e judicioso ensinamento na doutrina brasileira o de que a jurisdição não é estadual nem federal. Ela é simplesmente nacional e, como expressão do poder estatal soberano da República brasileira, seu exercício é distribuído pela Constituição Federal segundo os critérios reputados convenientes. As competências jurisdicionais atribuídas aos Estados integram-se na fórmula federativa brasileira”.  

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*Professor titular de direito constitucional da UERJ. Doutor livre-docente pela UERJ. Mestre em Direito, Yale Law School. Advogado do escritório Luís Roberto Barroso e Associados

 

 




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