Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito
(O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)
Luís Roberto Barroso*1 2
Sumário: Introdução. Parte I. Neoconstitucionalismo e transformações do direito constitucional contemporâneo. I. Marco histórico. II. Marco filosófico. III. Marco teórico. 1. A força normativa da Constituição. 2. A expansão da jurisdição constitucional. 3. A nova interpretação constitucional. Parte II. A constitucionalização do Direito. I. Generalidades. II. Origem e evolução do fenômeno. III. A constitucionalização do Direito no Brasil. 1. O direito infraconstitucional na Constituição. 2. A constitucionalização do direito infraconstitucional. 3. Constitucionalização do Direito e seus mecanismos de atuação prática. IV. Alguns aspectos da constitucionalização do Direito. 1. Direito civil. 2. Direito administrativo. 3. Direito penal. V. Constitucionalização e judicialização das relações sociais. Conclusão
INTRODUÇÃO
"Chega de ação. Queremos promessas".
Anônimo
Assim protestava o grafite, ainda em tinta fresca, inscrito no muro de uma cidade, no coração do mundo ocidental. A espirituosa inversão da lógica natural dá conta de uma das marcas dessa geração: a velocidade da transformação, a profusão de idéias, a multiplicação das novidades. Vivemos a perplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os tempos não andam propícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido.Para jingles, e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos. De fato, a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes3 e a insegurança é a característica da nossa era4 .
Na aflição dessa hora, imerso nos acontecimentos, não pode o intérprete beneficiar-se do distanciamento crítico em relação ao fenômeno que lhe cabe analisar. Ao contrário, precisa operar em meio à fumaça e à espuma. Talvez esta seja uma boa explicação para o recurso recorrente aos prefixos pós e neo: pós-modernidade, pós-positivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio depois e que tem a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus.
O artigo que se segue procura estudar as causas e os efeitos das transformações ocorridas no direito constitucional contemporâneo, lançando sobre elas uma visão positiva e construtiva. Procura-se oferecer consolo e esperança. Alguém dirá que parece um texto de auto-ajuda. Não adianta: ninguém escapa do seu próprio tempo.
Parte I
NEOCONSTITUCIONALISMO E TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
Nos três tópicos que se seguem, empreende-se o esforço de reconstituir, de maneira objetiva, a trajetória percorrida pelo direito constitucional nas últimas décadas, na Europa e no Brasil, levando em conta três marcos fundamentais: o histórico, o teórico e o filosófico. Neles estão contidas as idéias e as mudanças de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudência nesse período, criando uma nova percepção da Constituição e de seu papel na interpretação jurídica em geral.
I. Marco histórico
O marco histórico do novo direito constitucional, na Europa continental, foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália. No Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar. A seguir, breve exposição sobre cada um desses processos.
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2a. Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. Seria mau investimento de tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na matéria.
A principal referência no desenvolvimento do novo direito constitucional é a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã5 ), de 1949, e, especialmente, a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951. A partir daí teve início uma fecunda produção teórica e jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional no âmbito dos países de tradição romano-germânica. A segunda referência de destaque é a da Constituição da Itália, de 1947, e a subseqüente instalação da Corte Constitucional, em 1956. Ao longo da década de 70, a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional.
No caso brasileiro, o renascimento do direito constitucional se deu, igualmente, no ambiente de reconstitucionalização do país, por ocasião da discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Sem embargo de vicissitudes de maior ou menor gravidade no seu texto, e da compulsão com que tem sido emendada ao longo dos anos, a Constituição foi capaz de promover, de maneira bem sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrático de direito.
Mais que isso: a Carta de 1988 tem propiciado o mais longo período de estabilidade institucional da história republicana do país. E não foram tempos banais. Ao longo da sua vigência, destituiu-se por impeachment um Presidente da República, houve um grave escândalo envolvendo a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantes no esquema de poder da República, foi eleito um Presidente de oposição e do Partido dos Trabalhadores, surgiram denúncias estridentes envolvendo esquemas de financiamento eleitoral e de vantagens para parlamentares, em meio a outros episódios. Em nenhum desses eventos houve a cogitação de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Nessa matéria, percorremos em pouco tempo todos os ciclos do atraso6 .
Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor.
II. Marco filosófico
O marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo. O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual é assinalada pela superação - ou, talvez, sublimação - dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo7 .
O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximou a lei da razão e transformou-se na filosofia natural do Direito. Fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e as codificações. Considerado metafísico e anti-científico, o direito natural foi empurrado para a margem da história pela ascensão do positivismo jurídico, no final do século XIX. Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2a. Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito8 .
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a filosofia9 .
III. Marco teórico
No plano teórico, três grandes transformações subverteram o conhecimento convencional relativamente à aplicação do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. A seguir, a análise sucinta de cada uma delas.
1. A força normativa da Constituição
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.
Com a reconstitucionalização que sobreveio à 2a. Guerra Mundial, este quadro começou a ser alterado. Inicialmente na Alemanha10 e, com maior retardo, na Itália11 . E, bem mais à frente, em Portugal12 e na Espanha13 . Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado. A propósito, cabe registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na matéria não eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões de normatividade do constituinte, de um lado, e, de outro lado, as circunstâncias da realidade fática e as eventuais resistências do status quo.
O debate acerca da força normativa da Constituição só chegou ao Brasil, de maneira consistente, ao longo da década de 80, tendo enfrentado as resistências previsíveis14 . Além das complexidades inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica, padecia o país de patologias crônicas, ligadas ao autoritarismo e à insinceridade constitucional. Não é surpresa, portanto, que as Constituições tivessem sido, até então, repositórios de promessas vagas e de exortações ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. Coube à Constituição de 1988, bem como à doutrina e à jurisprudência que se produziram a partir de sua promulgação, o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada.
2. A expansão da jurisdição constitucional
Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da Constituição. A fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados em relação ao processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário. Inúmeros países europeus vieram a adotar um modelo próprio de controle de constitucionalidade, associado à criação de tribunais constitucionais.
Assim se passou, inicialmente, na Alemanha (1951) e na Itália (1956), como assinalado. A partir daí, o modelo de tribunais constitucionais se irradiou por toda a Europa continental. A tendência prosseguiu com Chipre (1960) e Turquia (1961). No fluxo da democratização ocorrida na década de 70, foram instituídos tribunais constitucionais na Grécia (1975), na Espanha (1978) e em Portugal (1982). E também na Bélgica (1984). Nos últimos anos do século XX, foram criadas cortes constitucionais em países do leste europeu, como Polônia (1986), Hungria (1990), Rússia (1991), República Tcheca (1992), Romênia (1992), República Eslovaca (1992) e Eslovênia (1993). O mesmo se passou em países africanos, como Argélia (1989), África do Sul (1996) e Moçambique (2003).Atualmente na Europa, além do Reino Unido, somente a Holanda e Luxemburgo ainda mantêm o padrão de supremacia parlamentar, sem adoção de qualquer modalidade de judicial review. O caso francês será objeto de menção à parte.
No Brasil, o controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituição republicana, de 1891. A denominada ação genérica (ou, atualmente, ação direta), destinada ao controle por via principal - abstrato e concentrado -, foi introduzida pela Emenda Constitucional nº 16, de 1965. Nada obstante, a jurisdição constitucional expandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituição de 1988. A causa determinante foi a ampliação do direito de propositura15 . A ela somou-se a criação de novos mecanismos de controle concentrado, como a ação declaratória de constitucionalidade16 e a regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental17 .
No sistema constitucional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal pode exercer o controle de constitucionalidade (i) em ações de sua competência originária (CF, art. 102, I), (ii) por via de recurso extraordinário (CF, art. 102, III) e (iii) em processos objetivos, nos quais se veiculam as ações diretas18 . De 1988 até abril de 2005 já haviam sido ajuizadas 3.469 ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn), 9 ações declaratórias de constitucionalidade e 69 argüições de descumprimento de preceito fundamental. Para conter o número implausível de recursos extraordinários interpostos para o Supremo Tribunal Federal, a Emenda Constitucional nº 45, que procedeu a diversas modificações na disciplina do Poder Judiciário, criou a figura da repercussão geral da questão constitucional discutida, como requisito de admissibilidade do recurso19 .
3. A nova interpretação constitucional
A interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica. Tal circunstância é uma decorrência natural da força normativa da Constituição, isto é, do reconhecimento de que as normas constitucionais são normas jurídicas, compartilhando de seus atributos. Porque assim é, aplicam-se à interpretação constitucional os elementos tradicionais de interpretação do Direito, de longa data definidos como o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico. Cabe anotar, neste passo, para adiante voltar-se ao tema, que os critérios tradicionais de solução de eventuais conflitos normativos são o hierárquico (lei superior prevalece sobre a inferior), o temporal (lei posterior prevalece sobre a anterior) e o especial (lei especial prevalece sobre a geral).
Sem prejuízo do que se vem de afirmar, o fato é que as especificidades das normas constitucionais (v. supra) levaram a doutrina e a jurisprudência, já de muitos anos, a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. Tais princípios, de natureza instrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade20 .
Antes de prosseguir, cumpre fazer uma advertência: a interpretação jurídica tradicional não está derrotada ou superada como um todo. Pelo contrário, é no seu âmbito que continua a ser resolvida boa parte das questões jurídicas, provavelmente a maioria delas. Sucede, todavia, que os operadores jurídicos e os teóricos do Direito se deram conta, nos últimos tempos, de uma situação de carência: as categorias tradicionais da interpretação jurídica não são inteiramente ajustadas para a solução de um conjunto de problemas ligados à realização da vontade constitucional. A partir daí deflagrou-se o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias, agrupados sob a denominação de nova interpretação constitucional, que se utiliza de um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico21 . Procede-se, a seguir, a uma breve comparação entre os dois modelos.
A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz, cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável ao problema a ser resolvido, revelando a solução nela contida. Vale dizer: a resposta para os problemas está integralmente no sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função técnica de conhecimento, de formulação de juízos de fato. No modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante subsunção22 .
Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.
Estas transformações noticiadas acima, tanto em relação à norma quanto ao intérprete, são ilustradas de maneira eloqüente pelas diferentes categorias com as quais trabalha a nova interpretação. Dentre elas incluem-se as cláusulas gerais, os princípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação. Abaixo uma breve nota sobre cada uma delas.
As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação23 .
O reconhecimento de normatividade aos princípios e sua distinção qualitativa em relação às regras é um dos símbolos do pós-positivismo (v. supra). Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios. A definição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficiência também transfere para o intérprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurídica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais incidem. Também aqui, portanto, impõe-se a atuação do intérprete na definição concreta de seu sentido e alcance24 .
A existência de colisões de normas constitucionais, tanto as de princípios como as de direitos fundamentais25 , passou a ser percebida como um fenômeno natural - até porque inevitável - no constitucionalismo contemporâneo. As Constituições modernas são documentos dialéticos, que consagram bens jurídicos que se contrapõem. Há choques potenciais entre a promoção do desenvolvimento e a proteção ambiental, entre a livre-iniciativa e a proteção do consumidor. No plano dos direitos fundamentais, a liberdade religiosa de um indivíduo pode conflitar-se com a de outro, o direito de privacidade e a liberdade de expressão vivem em tensão contínua, a liberdade de reunião de alguns pode interferir com o direito de ir e vir dos demais26 . Quando duas normas de igual hierarquia colidem em abstrato, é intuitivo que não possam fornecer, pelo seu relato, a solução do problema. Nestes casos, a atuação do intérprete criará o Direito aplicável ao caso concreto.
A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação27. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas. Tampouco podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos - hierárquico, cronológico e da especialização - quando a colisão se dá entre disposições da Constituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores (v. infra) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade.
Chega-se, por fim, à argumentação28
, à razão prática, ao controle da racionalidade das decisões
proferidas, mediante ponderação, nos casos difíceis, que são aqueles
que comportam mais de uma solução possível e razoável. As decisões que
envolvem a atividade criativa do juiz potencializam o dever de fundamentação,
por não estarem inteiramente legitimadas pela lógica da separação de Poderes
- por esta última, o juiz limita-se a aplicar, no caso concreto, a decisão
abstrata tomada pelo legislador. Para assegurar a legitimidade e a racionalidade
de sua interpretação nessas situações, o intérprete deverá, em meio a
outras considerações: (i) reconduzi-la sempre ao sistema jurídico, a uma
norma constitucional ou legal que lhe sirva de fundamento - a legitimidade de
uma decisão judicial decorre de sua vinculação a uma deliberação
majoritária, seja do constituinte ou do legislador; (ii) utilizar-se de um
fundamento jurídico que possa ser generalizado aos casos equiparáveis, que
tenha pretensão de universalidade: decisões judiciais não devem ser
casuísticas; (iii) levar em conta as conseqüências práticas que sua decisão
produzirá no mundo dos fatos29 .
Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo
direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto
amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em
meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a
formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao
longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o
pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a
reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto
de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da
jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da
interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um
processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.
Parte II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
I. Generalidades
A locução constitucionalização do Direito é de uso relativamente recente na terminologia jurídica e, além disso, comporta múltiplos sentidos. Por ela se poderia pretender caracterizar, por exemplo, qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supremacia. Como este é um traço comum de grande número de sistemas jurídicos contemporâneos, faltaria especificidade à expressão. Não é, portanto, nesse sentido que está aqui empregada. Poderia ela servir para identificar, ademais, o fato de a Constituição formal incorporar em seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito. Trata-se de fenômeno iniciado, de certa forma, com a Constituição portuguesa de 1976, continuado pela Constituição espanhola de 1978 e levado ao extremo pela Constituição brasileira de 1988. Embora esta seja uma situação dotada de características próprias, não é dela, tampouco, que se estará cuidando30 .
A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico31. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares. Veja-se como este processo, combinado com outras noções tradicionais, interfere com as esferas acima referidas.
Relativamente ao Legislativo, a constitucionalização (i) limita sua discricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das leis em geral e (ii) impõe-lhe determinados deveres de atuação para realização de direitos e programas constitucionais. No tocante à Administração Pública, além de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor a ela deveres de atuação, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário, (i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ação direta), bem como (ii) condiciona a interpretação de todas as normas do sistema. Por fim, para os particulares, estabelece limitações à sua autonomia da vontade, em domínios como a liberdade de contratar ou o uso da propriedade privada, subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais.
II. Origem e evolução do fenômeno
O estudo que se vem empreendendo até aqui relata a evolução do direito constitucional na Europa e no Brasil ao longo das últimas décadas. Este processo, que passa pelos marcos históricos, filosóficos e teóricos acima expostos, conduz ao momento atual32, cujo traço distintivo é a constitucionalização do Direito. A aproximação entre constitucionalismo e democracia, a força normativa da Constituição e a difusão da jurisdição constitucional foram ritos de passagem para o modelo atual . O leitor atento já terá se dado conta, no entanto, de que a seqüência histórica percorrida e as referências doutrinárias destacadas não são válidas para três experiências constitucionais marcantes: as do Reino Unido, dos Estados Unidos e da França. O caso francês será analisado um pouco mais à frente. Um breve comentário é pertinente sobre os outros dois.
No tocante ao Reino Unido, os conceitos não se aplicam. Embora tenha sido o Estado precursor do modelo liberal, com limitação do poder absoluto e afirmação do rule of the law, falta-lhe uma Constituição escrita e rígida, que é um dos pressupostos, como o nome sugere, da constitucionalização do Direito. Poder-se-ia argumentar, é certo, que há entre os britânicos uma Constituição histórica e que ela é, inclusive, mais rígida que boa parte das Cartas escritas do mundo. Ou reconhecer o fato de que o Parlamento inglês adotou, em 1998, o "Human Rights Act", incorporando ao direito interno a Convenção Européia de Direitos Humanos33 . Mas mesmo que se concedesse a esses argumentos, não seria possível superar um outro: a inexistência do controle de constitucionalidade e, mais propriamente, de uma jurisdição constitucional no sistema inglês34 . No modelo britânico vigora a supremacia do Parlamento, e não da Constituição.
Já quanto aos Estados Unidos, a situação é exatamente oposta. Berço do constitucionalismo escrito e do controle de constitucionalidade, a Constituição americana - a mesma desde 1787 - teve, desde a primeira hora, o caráter de documento jurídico, passível de aplicação direta e imediata pelo Judiciário. De fato, a normatividade ampla e a judicialização das questões constitucionais têm base doutrinária em O Federalista e precedente jurisprudencial firmado desde 1803, quando do julgamento do caso Marbury v. Madison pela Suprema Corte. Por esta razão, a interpretação de todo o direito posto à luz da Constituição é característica histórica da experiência americana, e não singularidade contemporânea35 . O grande debate doutrinário nos Estados Unidos é acerca da legitimidade e dos limites da atuação do Judiciário na aplicação de valores substantivos e no reconhecimento de direitos fundamentais que não se encontrem expressos na Constituição (v. infra).
Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Ali, sob o regime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham uma outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores . O sistema jurídico deve proteger determinados direitos e valores36, não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os Poderes estatais. O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth37 , julgado em 15 de janeiro de 195838 .
A partir daí, baseando-se no catálogo de direitos fundamentais da Constituição alemã, o Tribunal Constitucional promoveu uma verdadeira "revolução de idéias"39 , especialmente no direito civil. De fato, ao longo dos anos subseqüentes, a Corte invalidou dispositivos do BGB, impôs a interpretação de suas normas de acordo com a Constituição e determinou a elaboração de novas leis. Assim, por exemplo, para atender ao princípio da igualdade entre homens e mulheres, foram introduzidas mudanças legislativas em matéria de regime matrimonial, direitos dos ex-cônjuges após o divórcio, poder familiar, nome de família e direito internacional privado. De igual sorte, o princípio da igualdade entre os filhos legítimos e naturais provocou reformas no direito de filiação40 . De parte isso, foram proferidos julgamentos interessantes em temas como uniões homossexuais (homoafetivas)41 e direito dos contratos42 .
Na Itália, a Constituição entrou em vigor em 1º de janeiro de 1948. O processo de constitucionalização do Direito, todavia, iniciou-se apenas na década de 60, consumando-se nos anos 70. Relembre-se que a Corte Constitucional italiana somente veio a se instalar em 1956. Antes disso, o controle de constitucionalidade foi exercido, por força da disposição constitucional transitória VII, pela jurisdição ordinária, que não lhe deu vitalidade. Pelo contrário, remonta a esse período a formulação, pela Corte de Cassação, da distinção entre normas preceptivas, de caráter vinculante e aplicáveis pelos tribunais, e normas de princípio ou programáticas, dirigidas apenas ao legislador e não aplicáveis diretamente pelo Judiciário. Assim, pelos nove primeiros anos de vigência, a Constituição e os direitos fundamentais nela previstos não repercutiram sobre a aplicação do direito ordinário43 .
Somente com a instalação da Corte Constitucional - e, aliás, desde a sua primeira decisão - as normas constitucionais de direitos fundamentais passaram a ser diretamente aplicáveis, sem intermediação do legislador. A Corte desenvolveu um conjunto de técnicas de decisão44 , tendo enfrentado, durante os primeiros anos de sua atuação, a arraigada resistência das instâncias ordinárias e, especialmente, da Corte de Cassação, dando lugar a uma disputa referida, em certa época, como "guerra das cortes"45 . A exemplo do ocorrido na Alemanha, a influência da constitucionalização do Direito e da própria Corte Constitucional se manifestou em decisões de inconstitucionalidade, em convocações à atuação do legislador e na reinterpretação das normas infraconstitucionais em vigor.
De 1956 a 2003, a Corte Constitucional proferiu 349 decisões em questões constitucionais envolvendo o Código Civil, das quais 54 declararam a inconstitucionalidade de dispositivos seus, em decisões da seguinte natureza: 8 de invalidação, 12 interpretativas e 34 aditivas46 (sobre as características de cada uma delas, v. nota ao parágrafo anterior). Foram proferidos julgados em temas que incluíram adultério47 , uso do nome do marido48 e direitos sucessórios de filhos ilegítimos49 , em meio a outros. No plano legislativo, sob influência da Corte Constitucional, foram aprovadas, ao longo dos anos, modificações profundas no direito de família, inclusive em relação ao divórcio, no direito à adoção e no direito do trabalho. Estas alterações, levadas a efeito por leis especiais, provocaram a denominada "descodificação" do direito civil50 .
Na França, o processo de constitucionalização do Direito teve início muito mais tarde e ainda vive uma fase de afirmação. A Constituição de 1958, como se sabe, não previu o controle de constitucionalidade, quer no modelo europeu, quer no americano, tendo optado por uma fórmula diferenciada: a do controle prévio, exercido pelo Conselho Constitucional em relação a algumas leis, antes de entrarem em vigor51 . De modo que não há no sistema francês, a rigor técnico, uma verdadeira jurisdição constitucional. Não obstante, alguns avanços significativos e constantes vêm ocorrendo, a começar pela decisão de 16 de julho de 197152 . A ela seguiu-se a Reforma de 29 de outubro de 1974, ampliando a legitimidade para suscitar-se a atuação do Conselho Constitucional53 . Aos poucos, começam a ser incorporados ao debate constitucional francês temas como a impregnação da ordem jurídica pela Constituição, o reconhecimento de força normativa às normas constitucionais e o uso da técnica da interpretação conforme a Constituição54 . Tal processo de constitucionalização do Direito, cabe advertir, enfrenta a vigorosa resistência da doutrina mais tradicional, que nele vê ameaças diversas, bem como a usurpação dos poderes do Conselho de Estado e da Corte de Cassação55.
III. A constitucionalização do Direito no Brasil
1. O direito infraconstitucional na Constituição
A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do país. Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilégios corporativos. A euforia constituinte - saudável e inevitável após tantos anos de exclusão da sociedade civil - levaram a uma Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa56 .
Quanto ao ponto aqui relevante, é bem de ver que todos os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menor relevância, tratados na Constituição. A catalogação dessas previsões vai dos princípios gerais às regras miúdas, levando o leitor do espanto ao fastio. Assim se passa com o direito administrativo, civil, penal, do trabalho, processual civil e penal, financeiro e orçamentário, tributário, internacional e mais além. Há, igualmente, um título dedicado à ordem econômica, no qual se incluem normas sobre política urbana, agrícola e sistema financeiro. E outro dedicado à ordem social, dividido em numerosos capítulos e seções, que vão da saúde até os índios.
Embora o fenômeno da constitucionalização do Direito, como aqui analisado, não se confunda com a presença de normas de direito infraconstitucional na Constituição, há um natural espaço de superposição entre os dois temas. Com efeito, na medida em que princípios e regras específicos de uma disciplina ascendem à Constituição, sua interação com as demais normas daquele subsistema muda de qualidade e passa a ter um caráter subordinante. Trata-se da constitucionalização das fontes do Direito naquela matéria. Tal circunstância, nem sempre desejável57 , interfere com os limites de atuação do legislador ordinário e com a leitura constitucional a ser empreendida pelo Judiciário em relação ao tema que foi constitucionalizado.
2. A constitucionalização do direito infraconstitucional
Nos Estados de democratização mais tardia, como Portugal, Espanha e, sobretudo, o Brasil, a constitucionalização do Direito é um processo mais recente, embora muito intenso. Verificou-se, entre nós, o mesmo movimento translativo ocorrido inicialmente na Alemanha e em seguida na Itália: a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico. A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios. Com grande ímpeto, exibindo força normativa sem precedente, a Constituição ingressou na paisagem jurídica do país e no discurso dos operadores jurídicos.
Do centro do sistema jurídico foi deslocado o velho Código Civil. Veja-se que o direito civil desempenhou no Brasil - como alhures - o papel de um direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferia certa unidade dogmática ao ordenamento. A própria teoria geral do direito era estudada dentro do direito civil, e só mais recentemente adquiriu autonomia didática. No caso brasileiro, deve-se registrar, o Código Civil já vinha perdendo influência no âmbito do próprio direito privado. É que, ao longo do tempo, na medida em que o Código envelhecia, inúmeras leis específicas foram editadas, passando a formar microssistemas autônomos em relação a ele, em temas como alimentos, filiação, divórcio, locação, consumidor, criança e adolescente, sociedades empresariais. A exemplo do que se passou na Itália, também entre nós deu-se a "descodificação" do direito civil58 , fenômeno que não foi afetado substancialmente pela promulgação de um novo Código Civil em 2002, com vigência a partir de 200359 .
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si - com a sua ordem, unidade e harmonia - mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional60 .
À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituição:
a) Diretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto constitucional. Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributária (CF, art. 150, VI) ou o pedido de nulidade de uma prova obtida por meio ilícito (CF, art. 5º, LVI);
b) Indiretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões:
(i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir. Esta operação está sempre presente no raciocínio do operador do Direito, ainda que não seja por ele explicitada;
(ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.
Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.
3. A constitucionalização do Direito e seus mecanismos de atuação prática
A constitucionalização do Direito, como já antecipado, repercute sobre os diferentes Poderes estatais. Ao legislador e ao administrador, impõe deveres negativos e positivos de atuação, para que observem os limites e promovam os fins ditados pela Constituição. A constitucionalização, no entanto, é obra precípua da jurisdição constitucional, que no Brasil pode ser exercida, difusamente, por juízes e tribunais, e concentradamente pelo Supremo Tribunal Federal, quando o paradigma for a Constituição Federal. Esta realização concreta da supremacia formal e axiológica da Constituição envolve diferentes técnicas e possibilidades interpretativas, que incluem:
a) o reconhecimento da revogação das normas infraconstitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional), quando com ela incompatíveis;
b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis;
c) a declaração da inconstitucionalidade por omissão, com a conseqüente convocação à atuação do legislador61 ;
d) a interpretação conforme a Constituição, que pode significar:
(i) a leitura da norma infraconstitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes;
(ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possível da norma - geralmente a mais óbvia - e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição62 .
Aprofunde-se um pouco mais o argumento, especialmente em relação à interpretação conforme a Constituição. O controle de constitucionalidade é uma modalidade de interpretação e aplicação da Constituição. Independentemente de outras especulações, há consenso de que cabe ao Judiciário pronunciar a invalidade dos enunciados normativos incompatíveis com o texto constitucional, paralisando-lhes a eficácia. De outra parte, na linha do conhecimento convencional, a ele não caberia inovar na ordem jurídica, criando comando até então inexistente. Em outras palavras: o Judiciário estaria autorizado a invalidar um ato do Legislativo, mas não a substituí-lo por um ato de vontade própria63 .
Pois bem. As modernas técnicas de interpretação constitucional - como é o caso da interpretação conforme a Constituição - continuam vinculadas a esse pressuposto, ao qual agregam um elemento inexorável. A interpretação jurídica dificilmente é unívoca, seja porque um mesmo enunciado, ao incidir sobre diferentes circunstâncias de fato, pode produzir normas diversas64 , seja porque, mesmo em tese, um enunciado pode admitir várias interpretações, em razão da polissemia de seus termos. A interpretação conforme a Constituição, portanto, pode envolver (i) uma singela determinação de sentido da norma, (ii) sua não incidência a uma determinada situação de fato ou (iii) a exclusão, por inconstitucional, de uma das normas que podem ser extraídas do texto. Em qualquer dos casos, não há declaração de inconstitucionalidade do enunciado normativo, permanecendo a norma no ordenamento. Por esse mecanismo se reconciliam o princípio da supremacia da Constituição e o princípio da presunção de constitucionalidade. Naturalmente, o limite de tal interpretação está nas possibilidades semânticas do texto normativo65 .
IV. Alguns aspectos da constitucionalização do Direito
1. Direito civil66
As relações entre o direito constitucional e o direito civil atravessaram, nos últimos dois séculos, três fases distintas, que vão da indiferença à convivência intensa. O marco inicial dessa trajetória é a Revolução Francesa, que deu a cada um deles o seu objeto de trabalho: ao direito constitucional, uma Constituição escrita, promulgada em 1791; ao direito civil, o Código Civil napoleônico, de 1804. Apesar da contemporaneidade dos dois documentos, direito constitucional e direito civil não se integravam nem se comunicavam entre si. Veja-se cada uma das etapas desse processo de aproximação lenta e progressiva:
1a. fase: Mundos apartados
No início do constitucionalismo moderno, na Europa, a Constituição era vista como uma Carta Política, que servia de referência para as relações entre o Estado e o cidadão, ao passo que o Código Civil era o documento jurídico que regia as relações entre particulares, freqüentemente mencionado como a "Constituição do direito privado". Nessa etapa histórica, o papel da Constituição era limitado, funcionando como uma convocação à atuação dos Poderes Públicos, e sua concretização dependia, como regra geral, da intermediação do legislador. Destituída de força normativa própria, não desfrutava de aplicabilidade direta e imediata. Já o direito civil era herdeiro da tradição milenar do direito romano. O Código napoleônico realizava adequadamente o ideal burguês de proteção da propriedade e da liberdade de contratar, dando segurança jurídica aos protagonistas do novo regime liberal: o contratante e o proprietário. Esse modelo inicial de incomunicabilidade foi sendo progressivamente superado.
2a. fase: Publicização do direito privado
O Código napoleônico e os modelos que ele inspirou - inclusive o brasileiro - baseavam-se na liberdade individual, na igualdade formal entre as pessoas e na garantia absoluta do direito de propriedade. Ao longo do século XX, com o advento do Estado social e a percepção crítica da desigualdade material entre os indivíduos, o direito civil começa a superar o individualismo exacerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em nome da solidariedade social e da função social de instituições como a propriedade e o contrato, o Estado começa a interferir nas relações entre particulares, mediante a introdução de normas de ordem pública. Tais normas se destinam, sobretudo, à proteção do lado mais fraco da relação jurídica, como o consumidor, o locatário, o empregado. É a fase do dirigismo contratual, que consolida a publicização do direito privado67 .
3a. fase: Constitucionalização do direito civil
"Ontem os Códigos; hoje as Constituições. A revanche da Grécia contra Roma"68. A fase atual é marcada pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito civil. Há regras específicas na Constituição, impondo o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a função social da propriedade. E princípios que se difundem por todo o ordenamento, como a igualdade, a solidariedade social, a razoabilidade. Não é o caso de se percorrerem as múltiplas situações de impacto dos valores constitucionais sobre o direito civil, especificamente, e sobre o direito privado em geral69 . Mas há dois desenvolvimentos que merecem destaque, pela dimensão das transformações que acarretam.
O primeiro deles diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana na nova dogmática jurídica. Ao término da 2a. Guerra Mundial, tem início a reconstrução dos direitos humanos70 , que se irradiam a partir da dignidade da pessoa humana71 , referência que passou a constar dos documentos internacionais e das Constituições democráticas72 , tendo figurado na Carta brasileira de 1988 como um dos fundamentos da República (art. 1º, III). A dignidade humana impõe limites e atuações positivas ao Estado, no atendimento das necessidades vitais básicas73 , expressando-se em diferentes dimensões74 . No tema específico aqui versado, o princípio promove uma despatrimonialização75 e uma repersonalização76 do direito civil, com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física quanto psíquica.
O segundo desenvolvimento doutrinário que comporta uma nota especial é a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas77 . O debate remonta à decisão do caso Lüth (v. supra), que superou a rigidez da dualidade público-privado ao admitir a aplicação da Constituição às relações particulares, inicialmente regidas pelo Código Civil. O tema envolve complexidades e não será aprofundado aqui. As múltiplas situações suscetíveis de ocorrerem no mundo real não comportam solução unívoca78 . Nada obstante, com exceção da jurisprudência norte-americana (e, mesmo assim, com atenuações), há razoável consenso de que as normas constitucionais se aplicam, em alguma medida, às relações entre particulares. A divergência nessa matéria reside, precisamente, na determinação do modo e da intensidade dessa incidência. Doutrina e jurisprudência dividem-se em duas correntes principais:
a) a da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, mediante atuação do legislador infraconstitucional e atribuição de sentido às cláusulas abertas;
b) a da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, mediante um critério de ponderação entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da autonomia da vontade, de um lado, e o direito fundamental em jogo, do outro lado.
O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina. Na ponderação a ser empreendida, como na ponderação em geral, deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto. Para esta específica ponderação entre autonomia da vontade versus outro direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.g., se uma multinacional renuncia contratualmente a um direito, tal situação é diversa daquela em que um trabalhador humilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério (e.g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidade da pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais)79.
O processo de constitucionalização do direito civil, no Brasil, avançou de maneira progressiva, tendo sido amplamente absorvido pela jurisprudência e pela doutrina, inclusive civilista. Aliás, coube a esta, em grande medida, o próprio fomento da aproximação inevitável80 . Ainda se levantam, aqui e ali, objeções de naturezas diversas, mas o fato é que as resistências, fundadas em uma visão mais tradicionalista do direito civil, dissiparam-se em sua maior parte. Já não há quem negue abertamente o impacto da Constituição sobre o direito privado81 . A sinergia com o direito constitucional potencializa e eleva os dois ramos do Direito, em nada diminuindo a tradição secular da doutrina civilista.
2. Direito administrativo82
O direito constitucional e o direito administrativo têm origem e objetivos comuns: o advento do liberalismo e a necessidade de limitação do poder do Estado. Nada obstante, percorreram ambos trajetórias bem diversas, sob influência do paradigma francês. De fato, o direito constitucional passou o século XIX e a primeira metade do século XX associado às categorias da política, destituído de força normativa e aplicabilidade direta e imediata (v. supra). O direito administrativo, por sua vez, desenvolveu-se como ramo jurídico autônomo e arrebatou a disciplina da Administração Pública. A existência de uma jurisdição administrativa dissociada da atuação judicial e o prestígio do Conselho de Estado francês deram ao direito administrativo uma posição destacada no âmbito do direito público83 , associando-o à continuidade e à estabilidade das instituições84 . Somente após a 2a. Guerra Mundial, com o movimento de constitucionalização, esta situação de preeminência iria se modificar.
Não se vai reconstituir o histórico da relação entre o direito constitucional e o direito administrativo, que é feito pelos administrativistas em geral85 e desviaria o foco da análise que aqui se quer empreender. Na quadra presente, três conjuntos de circunstâncias devem ser considerados no âmbito da constitucionalização do direito administrativo: a) a existência de uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplina da Administração Pública; b) a seqüência de transformações sofridas pelo Estado brasileiro nos últimos anos; c) a influência dos princípios constitucionais sobre as categorias do direito administrativo. Todas elas se somam para a configuração do modelo atual, no qual diversos paradigmas estão sendo repensados ou superados.
A presença de dispositivos sobre a Administração Pública nas Constituições modernas tem início com as Cartas italiana e alemã, em precedentes que foram ampliados pelos Textos português e espanhol. A Constituição brasileira de 1988 discorre amplamente sobre a Administração Pública (v. supra), com censurável grau de detalhamento e contendo um verdadeiro estatuto dos servidores públicos. Nada obstante, contém algumas virtudes, como a dissociação da função administrativa da atividade de governo86 e a enunciação expressa de princípios setoriais do direito administrativo, que na redação original eram os da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A Emenda Constitucional nº 19, de 4.06.98, acrescentou ao elenco o princípio da eficiência87 . A propósito, a tensão entre a eficiência, de um lado, e a legitimidade democrática, de outro, é uma das marcas da Administração Pública na atualidade88 .
De parte isso, deve-se assinalar que o perfil constitucional do Estado brasileiro, nos domínios administrativo e econômico, foi alterado por um conjunto amplo de reformas econômicas, levadas a efeito por emendas e por legislação infraconstitucional, e que podem ser agrupadas em três categorias: a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro, a flexibilização de monopólios estatais e a desestatização. Tais transformações modificaram as bases sobre as quais se dava a atuação do Poder Público, tanto no que diz respeito à prestação de serviços públicos como à exploração de atividades econômicas. A diminuição expressiva da atuação empreendedora do Estado transferiu sua responsabilidade principal para o campo da regulação e fiscalização dos serviços delegados à iniciativa privada e das atividades econômicas que exigem regime especial. Foi nesse contexto que surgiram as agências reguladoras, via institucional pela qual se consumou a mutação do papel do Estado em relação à ordem econômica89 .
Por fim, mais decisivo que tudo para a constitucionalização do direito administrativo, foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais - não apenas os específicos, mas sobretudo os de caráter geral, que se irradiam por todo o sistema jurídico. Também aqui, a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais90 . Dentre eles é possível destacar:
a) a redefinição da idéia de supremacia do interesse público sobre o interesse privado
Em relação a este tema, deve-se fazer, em primeiro lugar, a distinção necessária entre interesse público (i) primário - isto é, o interesse da sociedade, sintetizado em valores como justiça, segurança e bem-estar social - e (ii) secundário, que é o interesse da pessoa jurídica de direito público (União, Estados e Municípios), identificando-se com o interesse da Fazenda Pública, isto é, do erário91 . Pois bem: o interesse público secundário jamais desfrutará de uma supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular. Se ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderação desses interesses, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto92 .
b) a vinculação do administrador à Constituição e não apenas à lei ordinária
Supera-se, aqui, a idéia restrita de vinculação positiva do administrador à lei, na leitura convencional do princípio da legalidade, pela qual sua atuação estava pautada por aquilo que o legislador determinasse ou autorizasse. O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento direto a Constituição e independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem.
c) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo
O conhecimento convencional em matéria de controle jurisdicional do ato administrativo limitava a cognição dos juízes e tribunais aos aspectos da legalidade do ato (competência, forma e finalidade) e não do seu mérito (motivo e objeto), aí incluídas a conveniência e oportunidade de sua prática. Já não se passa mais assim. Não apenas os princípios constitucionais gerais já mencionados, mas também os específicos, como moralidade, eficiência e, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade permitem o controle da discricionariedade administrativa (observando-se, naturalmente, a contenção e a prudência, para que não se substitua a discricionariedade do administrador pela do juiz)93 .
Um último comentário se impõe nesse passo. Há autores que se referem à mudança de alguns paradigmas tradicionais do direito administrativo como caracterizadores de uma privatização do direito público, que passa a estar submetido, por exemplo, a algumas categorias do direito das obrigações. Seria, de certa forma, a mão inversa da publicização do direito privado. Na verdade, é a aplicação de princípios constitucionais que leva determinados institutos de direito público para o direito privado e, simetricamente, traz institutos de direito privado para o direito público. O fenômeno em questão, portanto, não é nem de publicização de um, nem de privatização de outro, mas de constitucionalização de ambos. Daí resulta uma diluição do rigor da dualidade direito público-direito privado, produzindo áreas de confluência e fazendo com que a distinção passe a ser antes quantitativa do que qualitativa94 .
3. Direito penal
A repercussão do direito constitucional sobre a disciplina legal dos crimes e das penas é ampla, direta e imediata, embora não tenha sido explorada de maneira abrangente e sistemática pela doutrina especializada. A Constituição tem impacto sobre a validade e a interpretação das normas de direito penal, bem como sobre a produção legislativa na matéria. Em primeiro lugar, pela previsão de um amplo catálogo de garantias, inserido no art. 5º (v. supra). Além disso, o texto constitucional impõe ao legislador o dever de criminalizar determinadas condutas95 , assim como impede a criminalização de outras96 . Adicione-se a circunstância de que algumas tipificações previamente existentes são questionáveis à luz dos novos valores constitucionais ou da transformação dos costumes97 , assim como podem ser excepcionadas em algumas de suas incidências concretas, se provocarem resultado constitucionalmente indesejável98 .
A constitucionalização do direito penal suscita um conjunto instigante e controvertido de idéias, a serem submetidas ao debate doutrinário e à consideração da jurisprudência. Boa parte do pensamento jurídico descrê das potencialidades das penas privativas de liberdade, que somente deveriam ser empregadas em hipóteses extremas, quando não houvesse meios alternativos eficazes para a proteção dos interesses constitucionalmente relevantes99 . Os bens jurídicos constitucionais obedecem a uma ordenação hierárquica, de modo que a gravidade da punição deve ser graduada em função dessa lógica100 . A disciplina jurídica dada a determinada infração ou a pena aplicável não deve ir além nem tampouco ficar aquém do necessário à proteção dos valores constitucionais em questão. No primeiro caso, haverá inconstitucionalidade por falta de razoabilidade ou proporcionalidade101 ; no segundo, por omissão em atuar na forma reclamada pela Constituição102 .
Uma hipótese específica de constitucionalização do direito penal suscitou candente debate na sociedade e no Supremo Tribunal Federal: a da legitimidade ou não da interrupção da gestação nas hipóteses de feto anencefálico. Na ação constitucional ajuizada pediu-se a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal que tipificam o crime de aborto, para declarar sua não incidência naquela situação de inviabilidade fetal. A grande questão teórica em discussão era a de saber se, ao declarar a não incidência do Código Penal a uma determinada situação, porque isso provocaria um resultado inconstitucional, estaria o STF interpretando a Constituição - que é o seu papel - ou criando uma nova hipótese de não punibilidade do aborto, em invasão da competência do legislador103 .
Não é propósito desse estudo, voltado para uma análise panorâmica, percorrer caso a caso o impacto da Constituição sobre os diferentes segmentos do Direito. A constitucionalização, como já observado, manifesta-se de maneira difusa pelos diferentes domínios, ainda que em graus variados. As idéias gerais apresentadas são válidas, portanto, para todos os ramos, aí incluídos o direito do trabalho, o direito comercial, o direito ambiental, o direito processual e assim por diante.
V. Constitucionalização e judicialização das relações sociais
A constitucionalização, na linha do argumento aqui desenvolvido, expressa a irradiação dos valores constitucionais pelo sistema jurídico. Esta difusão da Lei Maior pelo ordenamento se dá por via da jurisdição constitucional, que abrange a aplicação direta da Constituição a determinadas questões; a declaração de inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis; e a interpretação conforme a Constituição, para atribuição de sentido às normas jurídicas em geral. No caso brasileiro, deve-se enfatizar, a jurisdição constitucional é exercida amplamente: do juiz estadual ao Supremo Tribunal Federal, todos interpretam a Constituição, podendo, inclusive, recusar aplicação à lei ou outro ato normativo que considerem inconstitucional104 .
Ao lado desse exercício amplo de jurisdição constitucional, há um outro fenômeno que merece ser destacado. Sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação ativa para tutela de interesses, mediante representação ou substituição processual. Nesse ambiente, juízes e tribunais passaram a desempenhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo. Isso conduz a um último desenvolvimento de natureza política, que é considerado no parágrafo abaixo.
Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes.
Pois bem: em razão desse conjunto de fatores - constitucionalização, aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário -, verificou-se no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final105 . Vejam-se abaixo, ilustrativamente, alguns dos temas e casos que foram objeto de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal ou de outros tribunais, em período recente:
(i) Políticas públicas: a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça);
(ii) Relações entre Poderes: determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal;
(iii) Direitos fundamentais: legitimidade da interrupção da gestação em certas hipóteses de inviabilidade fetal;
(iv) Questões do dia-a-dia das pessoas: legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas, a majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou a fixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde.
Os métodos de atuação e de argumentação dos órgãos judiciais são, como se sabe, jurídicos, mas a natureza de sua função é inegavelmente política, aspecto que é reforçado pela exemplificação acima. Sem embargo de desempenhar um poder político, o Judiciário tem características diversas das dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um Estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade.
Nesse ponto se coloca uma questão que só mais recentemente vem despertando o interesse da doutrina no Brasil, que é a da legitimidade democrática da função judicial, suas possibilidades e limites. Relativamente ao controle de constitucionalidade das normas, já há alguma literatura recente106 . No tocante ao controle de constitucionalidade de políticas públicas, o tema só agora começa a ser desbravado107 . Vale a pena investir uma energia final nessa matéria.
Em sentido amplo, a jurisdição constitucional envolve a interpretação e aplicação da Constituição, tendo como uma de suas principais expressões o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. No Brasil, esta possibilidade vem desde a primeira Constituição republicana (controle incidental e difuso), tendo sido ampliada após a Emenda Constitucional nº 16/65 (controle principal e concentrado). A existência de fundamento normativo expresso, aliada a outras circunstâncias, adiou o debate no país acerca da legitimidade do desempenho pela corte constitucional de um papel normalmente referido como contra-majoritário108 : órgãos e agentes públicos não eleitos têm o poder de afastar ou conformar leis elaboradas por representantes escolhidos pela vontade popular.
Ao longo dos últimos dois séculos, impuseram-se doutrinariamente duas grandes linhas de justificação desse papel das supremas cortes/tribunais constitucionais. A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberania popular e na separação de Poderes: a Constituição, expressão maior da vontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestações das maiorias parlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no desempenho de sua função de aplicar o Direito, afirmar tal supremacia, negando validade à lei inconstitucional. A segunda, que lida com a realidade mais complexa da nova interpretação jurídica, procura legitimar o desempenho do controle de constitucionalidade em outro fundamento: a preservação das condições essenciais de funcionamento do Estado democrático. Ao juiz constitucional cabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação109 .
A questão do controle das políticas públicas envolve, igualmente, a demarcação do limite adequado entre matéria constitucional e matéria a ser submetida ao processo político majoritário. Por um lado, a Constituição protege os direitos fundamentais e determina a adoção de políticas públicas aptas a realizá-los. Por outro, atribuiu as decisões sobre o investimento de recursos e as opções políticas a serem perseguidas a cada tempo aos Poderes Legislativo e Executivo. Para assegurar a supremacia da Constituição, mas não a hegemonia judicial, a doutrina começa a voltar sua atenção para o desenvolvimento de parâmetros objetivos de controle de políticas públicas110 .
O papel do Judiciário, em geral, e do Supremo Tribunal, em particular, na interpretação e na efetivação da Constituição, é o combustível de um debate permanente na teoria/filosofia111 constitucional contemporânea, pelo mundo afora. Como as nuvens, o tema tem percorrido trajetórias variáveis, em função de ventos circunstanciais, e tem assumido formas as mais diversas: ativismo versus contenção judicial; interpretativismo versus não-interpretativismo; constitucionalismo popular versus supremacia judicial. A terminologia acima deixa trair a origem do debate: a discussão existente sobre a matéria nos Estados Unidos, desde os primórdios do constitucionalismo naquele país. A seguir uma palavra sobre a experiência americana.
A atuação pró-ativa da Suprema Corte, no início da experiência constitucional americana, foi uma bandeira do pensamento conservador. Não há surpresa nisso: ali se encontrou apoio para a política da segregação racial112 e para a invalidação das leis sociais em geral113 , culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte . A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando a Suprema Corte114, nas presidências Warren e Burger, produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais115 , incluindo negros, presos e mulheres, bem como questões relativas a privacidade e aborto116 .
Pelos anos seguintes, o debate central na teoria constitucional norte-americana contrapôs, de um lado, liberais (ou progressistas), favoráveis ao judicial review e a algum grau de ativismo judicial, e, de outro, conservadores, favoráveis à auto-contenção judicial e a teorias como originalismo e não-interpretativsimo117 . De algum tempo para cá, em razão do amplo predomínio republicano e conservador, com reflexos na jurisprudência da Suprema Corte, alguns juristas liberais vêm questionando o que denominam "supremacia judicial" e defendendo um ainda impreciso constitucionalismo popular, com a "retirada da Constituição dos tribunais"118 .
O debate, na sua essência, é universal e gravita em torno das tensões e superposições entre constitucionalismo e democracia. É bem de ver, no entanto, que a idéia de democracia não se resume ao princípio majoritário, ao governo da maioria. Há outros princípios a serem preservados e há direitos da minoria a serem respeitados. Cidadão é diferente de eleitor; governo do povo não é governo do eleitorado119 . No geral, o processo político majoritário se move por interesses, ao passo que a lógica democrática se inspira em valores. E, muitas vezes, só restará o Judiciário para preservá-los120 . O deficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contra-majoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação121 .
O papel do Judiciário e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais deve ser o de resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o deficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, o que ocorrerá se atuar abusivamente, exercendo preferências políticas em lugar de realizar os princípios constitucionais122 . Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional.
No Brasil, só mais recentemente se começam a produzir estudos acerca do ponto de equilíbrio entre supremacia da Constituição, interpretação constitucional pelo Judiciário e processo político majoritário. O texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo tornam a tarefa complexa. Os diversos outros ingredientes da vivência brasileira espantam os riscos de tédio ou marasmo, embora provoquem sustos paralisantes. A difícil tarefa de construir as instituições de um país que se atrasou na história exige energia, idealismo e imunização contra a amargura. Não adianta: ninguém escapa do seu próprio tempo.
CONCLUSÃO
O novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo desenvolveu-se na Europa, ao longo da segunda metade do século XX, e, no Brasil, após a Constituição de 1988. O ambiente filosófico em que floresceu foi o do pós-positivismo, tendo como principais mudanças de paradigma, no plano teórico, o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a elaboração das diferentes categorias da nova interpretação constitucional.
Fruto desse processo, a constitucionalização do Direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance. A constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais.
Tal fato potencializa a importância do debate, na teoria constitucional, acerca do equilíbrio que deve haver entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário. As circunstâncias brasileiras, na quadra atual, reforçam o papel do Supremo Tribunal Federal, inclusive em razão da crise de legitimidade por que passam o Legislativo e o Executivo, não apenas como um fenômeno conjuntural, mas como uma crônica disfunção institucional.
__________________
1Professor Titular da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School e
Doutor livre-docente pela UERJ.
2Este trabalho foi escrito, em sua
maior parte, durante minha estada na Universidade de San Francisco (USFCA). Sou
grato a Jack Garvey pelo convite e por ter tornado a vida mais fácil durante
minha estada por lá. Sou igualmente grato a Nelson Diz, Ana Paula de Barcellos
e Cláudio Pereira de Souza Neto por haverem lido os originais e formulado
críticas e sugestões valiosas, bem como a Eduardo Mendonça, Teresa Melo e
Danielle Lins pela ajuda inestimável na pesquisa e na revisão do texto.
3Bertold Brecht, Elogio da
dialética. In: Antologia poética, 1977.
4John Kenneth Galbraith, A era da
incerteza, 1984.
5A Constituição alemã, promulgada em 1949, tem a designação
originária de "Lei Fundamental", que sublinhava seu caráter
provisório, concebida que foi para uma fase de transição.A Constituição definitiva só
deveria ser ratificada depois que o país recuperasse a unidade. Em 31 de agosto
de 1990 foi assinado o Tratado de Unificação, que regulou a adesão da
República Democrática Alemã (RDA) à República Federal da Alemanha (RFA).
Após a unificação não foi promulgada nova Constituição. Desde o dia 3 de
outubro de 1990 a Lei Fundamental vigora em toda a Alemanha.
6V. Luis Roberto Barroso, Doze anos da
Constituição brasileira de 1988: uma breve e acidentada história de sucesso.
In: Temas de direito constitucional, t. I, 2002.
7Autores pioneiros nesse debate
foram: John Rawls, A theory of justice, 1980; Ronald Dworkin, Taking
rights seriously, 1977; Robert Alexy, Teoria de los derechos
fundamentales, 1993. V. Albert Calsamiglia, Postpositivismo, Doxa 21:209,
1998, p. 209: "En un cierto sentido la teoría jurídica actual se pude
denominar postpositivista precisamente porque muchas de las enseñanzas del
positivismo han sido aceptadas y hoy todos en un cierto sentido somos
positivistas. (...) Denominaré postpositivistas a las teorías contemporáneas
que ponen el acento en los problemas de la indeterminación del derecho y las
relaciones entre el derecho, la moral y la política".
8Para um estudo mais aprofundado do
tema, com referências bibliográficas, v. Luís Roberto Barroso, Fundamentos
teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In: Temas
de direito constitucional, t. III.
9V. Ricardo Lobo Torres, Tratado de
direito constitucional, financeiro e tributário: Valores e princípios
constitucionais tributários, 2005, p. 41: "De uns trinta anos para cá
assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superação dos
positivismos. A partir do que se convencionou chamar de 'virada kantiana'
(kantische Wende), isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, deu-se
a reaproximação entre ética e direito, com a fundamentação moral dos
direitos humanos e com a busca da justiça fundada no imperativo categórico. O
livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado em 1971, constitui a
certidão do renascimento dessas idéias".
10Trabalho seminal nessa matéria é
o de Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitución. In: Escritos de
derecho constitucional, 1983. O texto, no original alemão, correspondente
à sua aula inaugural na cátedra da Universidade de Freiburg, é de 1959. Há
uma versão em língua portuguesa: A força normativa da Constituição,
1991, trad. Gilmar Ferreira Mendes.
11V. Ricardo Guastini, La
"constitucionalización" del ordenamiento jurídico. In: Miguel
Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003.
12V. J.J.Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 43 e ss..
13Sobre a questão em perspectiva
geral e sobre o caso específico espanhol, vejam-se, respectivamente, dois
trabalhos preciosos de Eduardo García de Enterría: La Constitución como
norma y el Tribunal Constitucional, 1991; e La constitución española de
1978 como pacto social y como norma jurídica, 2003.
14Luís Roberto Barroso, A
efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para
valer?. In: Anais do Congresso Nacional de Procuradores de Estado, 1986;
e tb. A força normativa da Constituição: Elementos para a efetividade das
normas constitucionais, 1987, tese de livre-docência apresentada na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicada sob o título O direito
constitucional e a efetividade de suas normas, 1990 (data da 1a. edição).
Na década de 60, em outro contexto e movido por preocupações distintas, José
Afonso da Silva escreveu sua célebre tese Aplicabilidade das normas
constitucionais, 1968.
15Desde a sua criação
até a configuração que lhe foi dada pela Constituição de 1969, o direito de
propositura da "representação de inconstitucionalidade" era
monopólio do Procurador-Geral da República. A Constituição de 1988 rompeu
com esta hegemonia, prevendo um expressivo elenco de legitimados ativos no seu
art. 103.
16Introduzida pela Emenda
Constitucional nº 3, de 1993. V, ainda, Lei nº 9.868, de 10.11.1999.
17V. Lei nº 9.882, de
3.12.99. Antes da lei, prevalecia o entendimento de que o mecanismo não era
aplicável.
18As ações diretas no
direito constitucional brasileiro são a ação direta de inconstitucionalidade
(art. 102, I, a), a ação declaratória de constitucionalidade (arts. 102, I,
a, e 103, § 4º) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art.
103, § 2º). Há, ainda, duas hipóteses especiais de controle concentrado: a
argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º) e a
ação direta interventiva (art. 36, III). Sobre o tema do controle de
constitucionalidade no direito brasileiro, v. dentre muitos: Gilmar Ferreira
Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990; Clèmerson Merlin Clève, A
fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 2000;
Ronaldo Poletti, Controle da constitucionalidade das leis, 2001; Lênio
Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2002; Zeno
Velloso, Controle jurisdicional de constitucionalidade, 2003; e Luís
Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro,
2004.
19A EC nº 45/2004
introduziu o § 3º do art. 102, com a seguinte dicção: "§ 3º. No
recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das
questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o
Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela
manifestação de dois terços de seus membros".
20V. Luís Roberto Barroso, Interpretação
e aplicação da Constituição, 2003.
21No caso brasileiro, como no de
outros países de constitucionalização recente, doutrina e jurisprudência
ainda se encontram em fase de elaboração e amadurecimento, fato que
potencializa a importância das referências estrangeiras. Esta é uma
circunstância histórica com a qual precisamos lidar, evitando dois extremos
indesejáveis: a subserviência intelectual, que implica na importação
acrítica de fórmulas alheias e, pior que tudo, a incapacidade de reflexão
própria; e a soberba intelectual, pela qual se rejeita aquilo que não se tem.
Nesse ambiente, não é possível utilizar modelos puros, concebidos alhures, e
se esforçar para viver a vida dos outros. O sincretismo - desde que consciente
e coerente - resulta sendo inevitável e desejável. Em visão aparentemente
diversa, v. Virgílio Afonso da Silva, Intepretação constitucional e
sincretismo metodológico. In: Virgílio Afonso da Silva (org.),
Interpretação constitucional, 2005.
22Identificada a norma
aplicável, procede-se ao enquadramento do fato no relato da regra jurídica,
pronunciando-se a conclusão. Um raciocínio, portanto, de natureza
silogística, no qual a norma é a premissa maior, o fato relevante é a
premissa menor e a conclusão é a sentença.
23As cláusulas gerais não são uma
categoria nova no Direito - de longa data elas integram a técnica legislativa -
nem são privativas do direito constitucional - podem ser encontradas no direito
civil, no direito administrativo e em outros domínios. Não obstante, elas são
um bom exemplo de como o intérprete é co-participante do processo de criação
do Direito. Um exemplo real, amplamente divulgado pela imprensa: quando da morte
da cantora Cássia Eller, disputaram a posse e guarda do seu filho, à época
com cinco anos, o avô materno e a companheira da artista. O critério fornecido
pela Constituição e pela legislação ao juiz era o de atender ao "melhor
interesse do menor". Sem o exame dos elementos do caso concreto e sua
adequada valoração, não era possível sequer iniciar a solução do problema.
24Tome-se, como exemplo, o
princípio da dignidade da pessoa humana e veja-se a divergência quanto à sua
interpretação, manifestada por dois juristas da nova geração, criados no
mesmo ambiente acadêmico. Ana Paula de Barcellos situa o mínimo existencial no
âmbito da dignidade humana e dele extrai os direitos à educação fundamental,
à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à
justiça (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio
da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 305). Dessa posição diverge Daniel
Sarmento, por entender inadequada a escolha de algumas prestações sociais, com
exclusão de outras que, a seu ver, são igualmente direitos fundamentais, como
o direito à "saúde curativa" (Direitos fundamentais e relações
privadas, 2004, p. 114).
25Note-se que há direitos
fundamentais que assumem a forma de princípios (liberdade, igualdade) e outros
a de regras (irretroatividade da lei penal, anterioridade tributária). Ademais,
há princípios que não são direitos fundamentais (livre-iniciativa).
26Sobre o tema das restrições aos
direitos fundamentais, v. Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e
interpretação constitucional: Uma contribuição ao estudo das restrições
aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, 2004,
tese de doutoramento apresentada ao programa de Pós-graduação em Direito
Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
27Ronald Dworkin, Taking rights
seriously, 1997; Robert Alexy: Teoria de los derechos fundamentales,
1997, Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal,
2000.
28Sobre o tema, v. Chaim Perelman e
Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação: A nova retórica, 1996
(1a. edição do original Traité de l'argumentation: La nouvelle rhétorique,
1958); Robert Alexy, Teoria de la argumentación jurídica, 1989 (1a.
edição do original Theorie der juristischen Argumentation, 1978);
Manuel Atienza, As razões do direito. Teorias da argumentação
jurídica, 2002; Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenêutica e
argumentação, 2003; Antônio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito,
argumentação e democracia. In: Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998:
uma década de Constituição, 1999.
29Sobre o tema, v. Ana Paula de
Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade judicial, 2005. V. tb.
Neil Maccormick, Legal reasoning and legal theory, 1978.
30Embora não se possa negar que a
presença, na Constituição, de normas cujo conteúdo pertence a outros ramos
do Direito (civil, administrativo, penal) influencie a interpretação do
direito infraconstitucional correspondente. Votar-se-á ao ponto mais à frente.
31Alguns autores têm utilizado os
termos impregnar e impregnação, que em português, no entanto, podem
assumir uma conotação depreciativa. V. Louis Favoreu - notável divulgador do
direito constitucional na França, falecido em 2004 -, La
constitutionnalization du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, La
constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 191: "Quer-se
designar aqui, principalmente, a constitucionalização dos direitos e
liberdades, que conduz a uma impregnação dos diferentes ramos do direito, ao
mesmo tempo que levam à sua transformação". E, também, Ricardo
Guastini, La "constitucionalización" del ordenamiento jurídico: El
caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p.
49: "Por 'constitucionalización del ordenamiento jurídico' propongo
entender um proceso de transformación de um ordenamiento al término del qual
el ordenamiento en cuestión resulta totalmente 'impregnado' por las normas
constitucionales. Un ordenamiento jurídico constitucionalizado se caracteriza
por una Constitución extremamente invasora, entrometida (pervasiva,
invadente), capaz de condicionar tanto la legislación como la
jurisprudencia y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos, así
como las relaciones sociales".
32Alguns autores procuraram elaborar
um catálogo de condições para a constitucionalização do Direito. É o caso
de Ricardo Guastini, La "constitucionalización" del ordenamiento
jurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s),
2003, p. 50 e ss., que inclui entre elas: (i) uma Constituição rígida; (ii) a
garantia jurisdicional da Constituição; (iii) a força vinculante da
Constituição; (iv) a "sobreinterpretação" da Constituição (sua
interpretação extensiva, com o reconhecimento de normas implícitas); (v) a
aplicação direta das normas constitucionais; (vi) a interpretação das leis
conforme a Constituição; (vii) a influência da Constituição sobre as
relações políticas.
33A nova lei somente entrou em vigor
em 2000.
34 A propósito, e em
desenvolvimento de certo modo surpreendente, deve ser registrada a aprovação
do Constitutional Reform Act, de 2005, que previu a criação de uma Suprema
Corte (In: www.opsi.gov.uk/acts/acts2005/20050004.htm, visitado em 8 ago. 2005).
Assinale-se a curiosidade de, não existindo uma Constituição escrita, ter
sido aprovado, não obstante, um ato que a reforma.
35Veja-se, a este propósito,
exemplificativamente, a jurisprudência que se produziu em matéria de direito
processual penal, pela submissão do common law dos Estados aos
princípios constitucionais. Em Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961,
considerou-se ilegítima a busca e apreensão feita sem mandado, como exigido
pela 4a. Emenda. Em Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335, 1963, entendeu-se
que a 6a. emenda assegurava a todos os acusados em processo criminal o direito a
um advogado. Em Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436, 1966, impôs-se à
autoridade policial, na abordagem de um suspeito, que comunique a ele que a) tem
o direito de permanecer calado; b) tudo que disser poderá e será usado contra
ele; c) tem direito a consultar-se com um advogado antes de depor e que este
poderá estar presente ao interrogatório; d) caso não tenha condições
financeiras para ter um advogado, um poderá ser-lhe designado. V. Kermit L.
Hall, The Oxford guide to United States Supreme Court decisions,
1999; Paul C. Bartholomew e Joseph F. Menez, Summaries of leading cases on
the Constitution, 1980; Duane Lockard e Walter F. Murphy, Basic cases in
constitutional law, 1992. Para uma análise objetiva e informativa sobre
este e outros aspectos, em língua portuguesa, v. José Alfredo de Oliveira
Baracho Júnior, Interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos
EUA e no Supremo Tribunal Federal. In: José Adércio Leite Sampaio, Jurisdição
constitucional e direitos fundamentais, 2003.
36Sobre a questão da dimensão
objetiva dos direitos fundamentais na literatura em língua portuguesa, v. José
Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição
portuguesa de 1976, 2001, p. 149, Gilmar Ferreira Mendes, Direitos
fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 214, e Daniel
Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 371.
37Os fatos subjacentes eram os
seguintes. Erich Lüth, presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, incitava ao
boicote de um filme dirigido por Veit Harlan, cineasta que havia sido ligado ao
regime nazista no passado. A produtora e a distribuidora do filme obtiveram, na
jurisdição ordinária, decisão determinando a cessação de tal conduta, por
considerá-la em violação do § 826 do Código Civil (BGB) ("Quem, de
forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a
reparar os danos causados"). O Tribunal Constitucional Federal reformou a
decisão, em nome do direito fundamental à liberdade de expressão, que deveria
pautar a intepretação do Código Civil.
38BverfGE 7, 198. Tradução livre e
editada da versão da decisão publicada em Jürgen Schwabe, Cincuenta años
de jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán, 2003, p.
132-37: "Os direitos fundamentais são antes de tudo direitos de defesa do
cidadão contra o Estado; sem embargo, nas disposições de direitos
fundamentais da Lei Fundamental se incorpora também uma ordem objetiva de
valores, que como decisão constitucional fundamental é válida para todas as
esferas do direito. (...) Esse sistema de valores - que encontra seu ponto
central no seio da comunidade social, no livre desenvolvimento da personalidade
e na dignidade da pessoa humana... - oferece direção e impulso para o
legislativo, a administração e o judiciário, projetando-se, também, sobre o
direito civil. Nenhuma disposição de direito civil pode estar em contradição
com ele, devendo todas ser interpretadas de acordo com seu espírito. (...) A
expressão de uma opinião, que contém um chamado para um boicote, não viola
necessariamente os bons costumes, no sentido do § 826 do Código Civil. Pode
estar justificada constitucionalmente pela liberdade de opinião, ponderadas
todas as circunstâncias do caso".
Esta decisão é comentada por inúmeros
autores nacionais, dentre os quais: Gilmar Ferreira Mendes, Direitos
fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 220-2, onde
descreve brevemente outros dois casos: "Blinkfüer" e
"Wallraff"; Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações
privadas, 2004, p. 141 e ss.; Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos
fundamentais e interpretação constitucional: Uma contribuição ao estudo das
restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios,
p. 416 e ss.; e Wilson Steinmetz, A vinculação dos particulares a direitos
fundamentais, 2004, p. 105 e ss..
39Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de
l'Alemagne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 85.
40Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de l'Alemagne. In: Michel Verpeaux,
Code
civil e constitution(s), 2005, p. 87-8, com identificação de cada uma das
leis. A jurisprudência referida na seqüência do parágrafo foi localizada a
partir de referências contidas nesse texto.
41Em um primeiro momento, em nome do
princípio da igualdade, uma lei de 16 de fevereiro de 2001 disciplinou as
uniões homossexuais, pondo fim à discriminação existente. Em um segundo
momento, esta lei foi objeto de argüição de inconstitucionalidade, sob o
fundamento de que afrontaria o art. 6º, I da Lei Fundamental, pelo qual "o
casamento e a família são colocados sob proteção particular do Estado",
ao legitimar um outro tipo de instituição de direito de família, paralelo ao
casamento heterossexual. A Corte não acolheu o argumento, assentando que a nova
lei nem impedia o casamento tradicional nem conferia à união homossexual
qualquer privilégio em relação à união convencional (1 BvF 1/01, de 17 jul.
2002, com votos dissidentes dos juízes Papier e Hass, v. sítio
www.bverfg.de,
visitado em 4 ago. 2005).
42Um contrato de fiança prestada pela filha, em favor
do pai, tendo por objeto quantia muitas vezes superior à sua capacidade
financeira foi considerado nulo por ser contrário à moral (BverfGE t. 89, p.
214, apud Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de l'Alemagne. In: Michel
Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 90); um pacto nupcial no qual a
mulher, grávida, renunciou a alimentos em nome próprio e em nome da criança
foi considerado nulo, por não poder prevalecer a liberdade contratual quando
há dominação de uma parte sobre a outra (1 BvR 12/92, de 6 fev 2001,
unânime, v. sítio www.bverfg.de, visitado em 4 ago. 2005); um pacto
sucessório que impunha ao filho mais velho do imperador Guilherme II o dever de
se casar com uma mulher que preenchesse determinadas condições ali impostas
foi considerado nulo por violar a liberdade de casamento (1 BvR 2248/01, de 22
mar 2004, unânime, v. sítio www.bverfg.de visitado em 4 ago. 2005).
43Sobre o
tema, v. Vezio Crisafulli, La Costituzione e le sue disposizione di
principio,
1952; José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968;
Ricardo Guastini, La "constitucionalización" del ordenamiento
jurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s),
2003; e Therry Di Manno, Code Civil e Constituion en Italie. In: Michel Verpeaux
(org.), Code Civil e Constitution(s), 2005.
44Além das decisões declaratórias
de inconstitucionalidade, a Corte utiliza diferentes técnicas, que incluem: 1)
decisões interpretativas, que correspondem à interpretação conforme a
Constituição, podendo ser (a) com recusa da argüição de
inconstitucionalidade, mas afirmação da interpretação compatível ou (b) com
aceitação da argüição de inconstitucionalidade, com declaração de
inconstitucionalidade da interpretação que vinha sendo praticada pela
jurisdição ordinária, em ambos os casos permanecendo em vigor a disposição
atacada; 2) decisões manipuladoras, nas quais se dá a aceitação da
argüição de inconstitucionalidade e, além da declaração de invalidade do
dispositivo, a Corte vai além, proferindo (a) sentença aditiva, estendendo a
norma à situação nela não contemplada, quando a omissão importar em
violação ao princípio da igualdade; e b) sentença substitutiva, pela qual a
Corte não apenas declara a inconstitucionalidade de determinada norma, como
também introduz no sistema, mediante declaração própria, uma norma nova.
Sobre o tema, v. Ricardo Guastini, La "constitucionalización" del
ordenamiento jurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel,
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 63-7.
45Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas
de l'Italie. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 107.
46Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas de l'Italie. In: Michel Verpeaux,
Code
civil e constitution(s), 2005, p. 103.
47Sentença 127/1968, j. 16 dez 1968, Rel.
Bonifácio, v. sítio www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A
Corte invalidou o artigo do Código Civil (art. 151, 2) que tratava de maneira
diferente o adultério do marido e o da mulher. O da mulher sempre seria causa
para separação, ao passo que o do homem somente em caso de "injúria
grave à mulher".
48Sentença 128/1970, j. 24 jun 1970, Rel. Mortati, v.
sítio www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A Corte proferiu
sentença aditiva para permitir à mulher retirar o nome do marido após a
separação (ocorrida por culpa do marido), o que não era previsto pelo art.
156 do Código Civil.
49Sentença 55/1979, j. 15 jun 1979, Rel. Amadei, v. sítio
www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A Corte declarou a
inconstitucionalidade do art. 565 do Código Civil, na parte em que excluía do
benefício da sucessão legítima os filhos naturais reconhecidos.
50N. Irti,
L'etá della decodificzione, 1989. V., tb., Pietro Perlingieri, Perfis do
direito civil, 1997, p. 5.
51Na sua concepção original, o Conselho
Constitucional destinava-se, sobretudo, a preservar as competências de um
Executivo forte contra as invasões do Parlamento. Suas funções principais
eram três: a) o controle dos regimentos de cada uma das câmaras (Assembléia
Nacional e Senado), para impedir que se investissem de poderes que a
Constituição não lhes atribui, como ocorrido na III e na IV Repúblicas; b) o
papel de "justiça eleitoral", relativamene às eleições
presidenciais, parlamentares e aos referendos; c) a delimitação do domínio da
lei, velando pela adequada repartição entre as competências legislativas e
regulamentares. Esta última função se exercia em três situações: a do art.
41, relacionada à invasão pela lei parlamentar de competência própria do
governo; a do art. 61, alínea 2, que permitia ao primeiro-ministro provocar o
controle acerca da inconstitucionalidade de uma lei, após sua aprovação, mas
antes de sua promulgação; e a do art. 37, alínea 2, relativamente à
modificabilidade, por via de decreto, de leis que possuíssem caráter
regulamentar. Com a reforma constitucional de 1974, o controle de
constitucionalidade das leis passou a ser a atividade principal do Conselho,
aproximando-o de uma corte constitucional. V. Louis Favoreu, La place du Conseil
Constitutionnel dans la Constitution de 1958. In: www.conseil-constitutionnel.fr, visitado em 26 jul. 2005; François Luchaire,
Le
Conseil Constitutionnel, 3 vs., 1997; John Bell, French constitutional
law,
1992.
52Objetivamente, a decisão nº 71-44 DC, de 16.07.71 (In:
www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1971/7144dc.htm, visitado em 26 jul.
2005), considerou que a exigência de autorização prévia, administrativa ou
judicial, para a constituição de uma associação violava a liberdade de
associação. Sua importância, todavia, foi o reconhecimento de que os direitos
fundamentais previstos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, e no preâmbulo da Constituição de 1946, incorporavam-se à
Constituição de 1958, por força de referência constante do preâmbulo desta,
figurando, portanto, como parâmetro para o controle de constitucionalidade das
leis. Esta decisão reforçou o prestígio do Conselho Constitucional, que
passou a desempenhar o papel de protetor dos direitos e liberdades fundamentais.
Além disso, consagrou o "valor positivo e constitucional" do
preâmbulo da Constituição e firmou a idéia de "bloco de
constitucionalidade". Essa expressão significa que a Constituição não
se limita às normas que integram ou se extraem do seu texto, mas inclui outros
textos normativos, que no caso eram a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, e o Preâmbulo da Constituição de 1946, bem como os
princípios fundamentais das leis da República, aos quais o referido preâmbulo
fazia referência. Sobre a importância dessa decisão, v. Léo Hamon, Contrôle
de constitutionnalité et protection des droits individuels, Dalloz, 1974, p.
83-90; G. Haimbowgh, Was it France's Marbury v. Madison?, Ohio State Law Journal
35:910, 1974; J.E.Beardsley, The Constitutional council and Constitutional
liberties in France, American Journal of Comparative Law, 1972, p. 431-52. Para
um comentário detalhado da decisão, v. L. Favoreu e L. Philip, Les grandes
décisions du Conseil Constitutionnel, 2003. Especificamente sobre bloco de
constitucionalidade, v. Michel de Villiers, Dictionaire du droit
constitutionnel, 2001; e Olivier Duhamel e Yves Mény, Dictionnaire
constituionnel, 1992.
53A partir daí, o direito de provocar a atuação do
Conselho Constitucional, que antes recaía apenas sobre o Presidente da
República, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assembléia Nacional e o
Presidente do Senado estendeu-se, também, a sessenta Deputados ou sessenta
Senadores. O controle de constitucionalidade tornou-se um importante instrumento
de atuação da oposição parlamentar. Entre 1959 e 1974, foram proferidas
apenas 9 (nove) decisões acerca de leis ordinárias (por iniciativa do
Primeiro-Ministro e do Presidente do Senado) e 20 (vinte) acerca de leis
orgânicas (pronunciamento obrigatório). De 1974 até 1998 houve 328
provocações (saisine) ao Conselho Constitucional. Os dados constam de Louis
Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de 1958. In:
www.conseil-constitutionnel.fr, visitado em 26 jul.2005.
54V. Louis Favoreu, La
constitutionnalisation du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, La
constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 190-2.
55Veja-se a
discussão do tema em Guillaume Drago, Bastien François e Nicolas Molfessis
(org.), La légitimité de la jurisprudence du Conseil Constitutionnel, 1999. Na
conclusão do livro, que documenta o Colóquio de Rennes, de setembro de 1996,
François Terré, ao apresentar o que corresponderia à conclusão do evento,
formulou crítica áspera à ascensão da influência do Conselho
Constitucional: "Les perpétuelles incantations que suscitent l'État de
droit, la soumission de l'État à des juges, sous l'influence conjugée du
kelsénisme, de la mauvaise conscience de l'Allemagne Fédérale et de
l'americanisme planétaire sont lassantes. Des contrepoids s'imposent. Puisque
le Conseil constituionnel est une juridiction, puisque la règle du double
degré de juridiction e le droit d'appel sont devenus paroles d'evangile, il est
naturel et urgent de faciliter le recours au referendum afin de permettre plus
facilement au peuple souverain de mettre, lê cãs échéant, un terme aux
errances du Conseil constitutionnel" (p. 409).
56Sobre o tema, v. Luís
Roberto Barroso, Doze anos da Constituição brasileira de 1988. In: Temas de
direito constitucional, t. I, 2002.
57Tanto a doutrina como a jurisprudência, no
plano do direito penal, têm condenado, por exemplo, a constitucionalização da
figura dos "crimes hediondos" (art. 5º, XLIII). V., por todos, João
José Leal, Crimes hediondos - A Lei 8.072 como expressão do direito penal da
severidade, 2003.
58Sobre o caso italiano, v. Pietro Perlingieri,
Perfis do
direito civil, 1997, p. 6: "O Código Civil certamente perdeu a
centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos
mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista,
é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto
Constitucional". Sobre o caso brasileiro, vejam-se, dentre outros: Maria
Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitucional, Revista de
Direito Civil 65:21; e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados
microssistemas e a Constituição: Premissas para uma reforma legislativa. In:
Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional, 2001.
59O novo
Código Civil, com início de vigência em 2003, foi duramente criticado por
setores importantes da doutrina civilista. Gustavo Tepedino referiu-se a ele
como "retrógrado e demagógico" acrescentando: "Do Presidente da
República, espera-se o veto; do Judiciário que tempere o
desastre"(Revista trimestral de dirieto civil 7, 2001, Editorial). Luiz
Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, consideraram inconstitucional o
projeto de Código Civil, em parecer publicado sob o título Um projeto de
Código Civil na contramão da Constituição, Revista trimestral de direito
civil 4:243, 2000, por não traduzir a supremacia da dignidade humana sobre os
aspectos patrimoniais e por violar o princípio da vedação do retrocesso. Em
sentido contrário, v. Judith Martins Costa, O direito privado como um
"sistema em construção". In: www.jus.com.br, visitado em 4 ago.
2005; e Miguel Reale, Visão geral do novo Código Civil. In: www.jus.com.br,
visitado em 4 ago. 2005 e O novo Código Civil e seus críticos. In:
www.jus.com.br, visitado em 4 ago. 2005.
60J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Fundamentos da Constituição, 1991, p. 45: "A principal manifestação da
preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica
deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo". V. também, Paulo
Ricardo Schier, Filtragem constitucional, 1999.
61Isso quando não prefira o
Supremo Tribunal produzir uma decisão integrativa, a exemplo da sentença
aditiva do direito italiano. Esta atuação envolve a sempre controvertida
questão da atuação como legislador positivo (v. infra).
62Relativamente a esta
segunda possibilidade, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação
da Constituição, 2004, p. 189.
63Nesse sentido, v. STF, DJU 15 abr. 1988, Rp
1.417-DF, Rel. Min. Moreira Alves: "Ao declarar a inconstitucionalidade de
uma lei em tese, o STF - em sua função de Corte Constitucional - atua como
legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para
criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo".
Passa-se ao largo, nesta instância, da discussão mais minuciosa do tema, que
abriga inúmeras complexidades, inclusive e notadamente em razão do
reconhecimento de que juízes e tribunais, em múltiplas situações,
desempenham uma atividade de co-participação na criação da norma.
64A doutrina
mais moderna tem traçado uma distinção entre enunciado normativo e norma,
baseada na premissa de que não há interpretação em abstrato. Enunciado
normativo é o texto, o relato contido no dispositivo constitucional ou legal.
Norma, por sua vez, é o produto da aplicação do enunciado a uma determinada
situação, isto é, a concretização do enunciado. De um mesmo enunciado é
possível extrair diversas normas. Por exemplo: do enunciado do art. 5º, LXIII
da Constituição - o preso tem direito de permanecer calado - extraem-se normas
diversas, inclusive as que asseguram o direito à não auto-incriminação ao
interrogado em geral (STF, DJU 14 dez. 2001, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence) e até ao depoente em CPI (STF, DJU 16 fev. 2001, HC 79.812, Rel. Min.
Celso de Mello) . Sobre o tema, v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do
direito, 1969, p. 270 e ss.; Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito
constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Edição especial
comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha,
1999, p. 45 e ss.; Riccardo Guastini, Distinguendo. Studi di teoria e metateoria
del diritto, 1996, p. 82-3; e Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003, p.
13.
65Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão: "Ao juiz
não é permitido mediante 'interpretação conforme a Constituição' dar um
significado diferente a uma lei cujo teor e sentido resulta evidente" (1
BvL 149/52-33, 11 jun. 1958); na do Supremo Tribunal Federal brasileiro:
"se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a
Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe
pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a
Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que
é privativo do legislador positivo" (STF, DJU 15 abr. 1988, Rp 1.417-7/DF,
Rel. Min. Moreira Alves).
66Pietro Perlingieri, Perfis de direito
civil, 1997;
Maria Celina Bodin de Moraes: A caminho de um direito civil constitucional,
Revista de Direito Civil 65:23, 1993; A constitucionalização do direito civil,
Revista de Direito Comparado Luso-brasileiro 17:76, 1999; Danos à pessoa
humana: Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003; Conceito de
dignidade humana: Substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Ingo Wolfgang
Sarlet, Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003; Gustavo
Tepedino: Temas de direito civil, 2004; Problemas de direito civil
constitucional (coord.), 2000; O direito civil e a legalidade
constitucional.
In: Revista Del Rey Jurídica 13:23, 2004; Luiz Edson Fachin: Repensando
fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo (coord.), 1998; Teoria
crítica do direito civil, 2000; Heloísa Helena Barboza, Perspectivas do
direito civil brasileiro para o próximo século, Revista da Faculdade de
Direito, UERJ, 1998-99; Teresa Negreiros: Fundamentos para uma interpretação
constitucional do princípio da boa-fé, 1998; Teoria do contrato: Novos
paradigmas, 2002; Judith Martins Costa (org.), A reconstrução do direito
privado, 2002; Paulo Luiz Neto Lobo, Constitucionalização do direito civil,
Revista de Direito Comparado Luso-brasileiro 17:56, 1999; Renan Lotufo, Direito
civil constitucional, cad. 3, 2002; Michel Verpeaux (org.), Code Civil et
Constitution(s), 2005.
67Sobre o tema, v. Orlando Gomes, Introdução ao direito
civil, 1999, p. 26; e Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito
civil, v. I, 2004, p. 18.
68A primeira parte da frase ("Ontem os Códigos;
hoje as Constituições") foi pronunciada por Paulo Bonavides, ao receber a
medalha Teixeira de Freitas, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1998. O
complemento foi feito por Eros Roberto Grau, ao receber a mesma medalha, em
2003, em discurso publicado em avulso pelo IAB: "Ontem, os códigos; hoje,
as Constituições. A revanche da Grécia sobre Roma, tal como se deu, em outro
plano, na evolução do direito de propriedade, antes justificado pela origem,
agora legitimado pelos fins: a propriedade que não cumpre sua função social
não merece proteção jurídica qualquer".
69Para este fim, v. Gustavo
Tepedino (org.), Problemas de direito civil constitucional, 2000, obra coletiva
na qual se discute a constitucionalização do direito civil em domínios
diversos, incluindo o direito das obrigações, as relações de consumo, o
direito de propriedade e o direito de família. Sobre o tema específico da
boa-fé objetiva, vejam-se Judith Martins-Costa, A boa-fé no direito privado,
1999; e Teresa Negreiros, Fundamentos para uma interpretação constitucional do
princípio da boa-fé, 1998.
70Este é o título do celebrado trabalho de Celso
Lafer, A reconstrução dos direitos humanos, 1988. Sobre o tema, v. tb.
Antônio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional dos direitos
humanos: Fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, 1991.
71O conteúdo
jurídico da dignidade humana se relaciona com a realização dos direitos
fundamentais ou humanos, nas suas três dimensões: individuais, políticos e
sociais. Sobre o tema, vejam-se Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica
dos princípios: O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; Ingo Sarlet,
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2004; José Afonso da Silva,
Dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito
Administrativo 212:89, 1998; Carmen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da
dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse Público 4:2,
1999. Vejam-se dois excertos representativos do entendimento dominante: José
Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa,
1998, p. 102: "[O] princípio da dignidade da pessoa humana está na base
de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e
liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos
direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais"; e Daniel
Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição brasileira, 2000, p.
59-60, "O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro
axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento
jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade
de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do
mercado".
72Como, e.g., na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, na Constituição italiana de 1947, na Constituição alemã de 1949, na
Constituição portuguesa de 1976 e na Constituição espanhola de 1978.
73Sobre o
tema, v. Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 305:
"O conteúdo básico, o núcleo essencial do princípio da dignidade da
pessoa humana, é composto pelo mínimo existencial, que consiste em um conjunto
de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o
indivíduo se encontra em situação de indignidade. (...) Uma proposta de
concretização do mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional
brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde
básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça".
74Em denso estudo, Maria Celina Bodin de Moraes, Conceito de dignidade humana:
Substrato axiológico e conteúdo normativo. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.),
Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003, decompõe o
conteúdo jurídico da dignidade humana em quatro princípios: igualdade,
integridade física e moral (psicofísica), liberdade e solidariedade.
75O termo
foi colhido em Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 33.
Aparentemente, o primeiro a utilizá-lo foi Carmine Donisi, Verso la
'depatrimonializzazione' del diritto privato. In: Rassegna di diritto civile 80,
1980 (conforme pesquisa noticiada em Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e
relações privadas, 2004, p. 115).
76Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski
Ruzyk, Um projeto de Código Civil na contramão da Constituição, Revista
trimestral de direito civil 4:243, 2000: "(A) aferição da
constitucionalidade de um diploma legal, diante da repersonalização imposta a
partir de 1988, deve levar em consideração a prevalência da proteção da
dignidade humana em relação às relações jurídicas patrimoniais". A
respeito da repersonalização do direito civil, v. também Adriano de Cupis,
Diritti della personalità, 1982.
77Sobre este tema, v. duas teses de doutorado
desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito Público da
UERJ, ambas aprovadas com distinção e louvor e publicadas em edição
comercial: Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004; e
Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretação
constitucional, 2005. Aliás, trabalhos de excelente qualidade têm sido
produzidos sobre a matéria, dentre os quais Wilson Steinmetz, A vinculação
dos particulares a direitos fundamentais, 2004; Ingo Wolfgang Sarlet (org.),
Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003; Rodrigo Kaufmann,
Dimensões e perspectivas da eficácia horizontal dos direitos fundamentais,
2003 (dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Brasília); Luís
Virgílio Afonso da Silva, A constitucionalização do direito: Os direitos
fundamentais nas relações entre particulares, 2004, mimeografado, tese de
livre-docência apresentada na Universidade de São Paulo - USP; André Rufino
do Vale, Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, 2004; e
Thiago Luís Santos Sombra, A eficácia dos direitos fundamentais nas relações
jurídico-privadas, 2004.
78Vejam-se, exemplificativamente, algumas delas: a) pode
um clube de futebol impedir o ingresso em seu estádio de jornalistas de um
determinado veículo de comunicação que tenha feito críticas ao time
(liberdade de trabalho e de imprensa)?; b) pode uma escola judaica impedir o
ingresso de crianças não judias (discriminação em razão da religião)?; c)
pode o empregador prever no contrato de trabalho da empregada a demissão por
justa causa em caso de gravidez (proteção da mulher e da procriação)?; d)
pode o locador recusar-se a firmar o contrato de locação porque o pretendente
locatário é muçulmano (de novo, liberdade de religião)?; e) pode um
jornalista ser demitido por ter emitido opinião contrária à do dono do jornal
(liberdade de opinião)?
79Para um aprofundamento do tema, v. Daniel Sarmento,
Direitos fundamentais e relações privadas, 2004; e Jane Reis Gonçalves
Pereira, Direitos fundamentais e interpretação constitucional, 2005.
80No caso
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, esta é uma das principais linhas
do Programa de Pós-graduação em Direito Civil, onde foram pioneiros
doutrinadores como Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloísa
Helena Barbosa. Na Universidade Federal do Paraná, destacam-se os trabalhos do
Professor Luiz Edson Fachin. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da
Professora Judith Martins Costa. Na PUC de São Paulo, do Professor Renan
Lotufo. Na Universidade Federal de Alagoas, Paulo Netto Lôbo.
81Gustavo Tepedino,
O direito civil e a legalidade constitucional, Revista Del Rey Jurídica 13:23,
2004: "Ao contrário do cenário dos anos 80, não há hoje civilista que
negue abertamente a eficácia normativa da Constituição e sua serventia para,
ao menos de modo indireto, auxiliar na interpretação construtiva da norma
infraconstitucional". Em seguida, em preciosa síntese, identifica o autor
as quatro objeções mais freqüentes à aplicação da Constituição às
relações de direito civil: a) não cabe ao constituinte, mas ao legislador,
que constitui uma instância mais próxima da realidade dos negócios, a
regulação da autonomia privada; b) a baixa densidade normativa dos princípios
constitucionais propiciaria excessiva discricionariedade aos magistrados; c) a
estabilidade milenar do direito civil restaria abalada pela instabilidade do
jogo político-constitucional; d) o controle axiológico das relações de
direito civil, para além dos limites claros do lícito e do ilícito,
significaria desmesurada ingerência na vida privada.
82Sobre as transformações
do direito administrativo na quadra atual, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Sociedade, Estado e administração pública, 1996;
Mutações do direito administrativo, 2000; e Direito regulatório, 2003; Caio Tácito, O retorno do
pêndulo: Serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro, Revista de
direito administrativo 202:1, 1995; Eros Roberto Grau, A ordem econômica na
Constituição de 1988, 1990; Odete Medauar, Direito administrativo
moderno,
1998; Maria Sylvia di Pietro, Parcerias na Administração Pública, concessão,
permissão, franquia, terceirização e outras formas, 1999; Carlos Ari
Sundfeld, Direito administrativo ordenador, 2003; Patrícia Batista,
Transformações do direito administrativo, 2003; Marcos Juruena,
Desestatização, privatização, concessões e terceirizações, 2000; Paulo
Modesto, A reforma da previdência e a definição de limites de remuneração e
subsídio dos agentes públicos no Brasil. In: Direito público: estudos em
homenagem ao professor Adilson Abreu Dallari, 2004; Humberto Ávila, Repensando
o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular".
In: O direito público em temos de crise - Estudos em homenagem a Ruy Rubem
Ruschel, 1999; Alexandre Aragão, Agências Reguladoras, 2002; Gustavo
Binenbojm, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: Um
novo paradigma para o direito administrativo, Revista de direito administrativo
239:1, 2005. V. tb. Luís Roberto Barroso: Modalidades de intervenção do
Estado na ordem econômica. Regime jurídico das sociedades de economia mista.
In: Temas de direito constitucional, t. I, 2002; A ordem econômica
constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. In:
Temas de direito constitucional, t. II, 2003; Regime constitucional do serviço
postal. Legitimidade da atuação da iniciativa privada. In: Idem; Agências
reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade
democrática. In: Idem; Para a formação da doutrina administravista no Brasil,
preste-se a homenagem devida e merecida a Miguel Seabra Fagundes, O controle dos
atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1a edição de 1957, e Hely Lopes
Meirelles, Curso de direito administrativo brasileiro, 1a edição de 1964. Caio
Tácito, além de escritos e inúmeros pareceres, dirige desde 1993 a Revista de
Direito Administrativo, a mais antiga e prestigiosa publicação na matéria.
Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de direito administrativo, 1a
edição de 1980, e, depois, Curso de direito administrativo, teve influência
decisiva no desenvolvimento de um direito administrativo na perspectiva da
cidadania e não da Administração.
83Sobre o tema, v. Patrícia Batista,
Transformações do direito administrativo, 2003, p. 36-7.
84A propósito, v. o
célebre artigo de Georges Vedel, Discontinuité du droit constituionnel et
continuité du droit administratif. In: Mélanges Waline, 1974. Sobre o tema, v.
também Louis Favoreu, La constitutionnalisation du droit. In: Bertrand Mathieu
e Michel Verpeaux, La constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p.
182.
85V. por todos, Hely Lopes Meirelles,
Direito administrativo brasileiro,
1993, p. 31. Para uma visão severamente crítica da origem e evolução do
direito administrativo, v. Gustavo Binenbojm, Da supremacia do interesse
público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito
administrativo, Revista de Direito Administrativo 239:1, 2005.
86V. Patrícia
Batista, Transformações do direito administrativo, 2003, p. 74.
87 A Lei nº
9.784, de 29.01.99, que regula o processo administrativo no plano federal,
enuncia como princípios da Administração Pública, dentre outros, os da
legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse
público e eficiência.
88V. Luís Roberto Barroso, Agências reguladoras.
Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. In:
Temas de direito constitucional, t. II, 2003, p. 303-4.
89As agências
reguladoras, como categoria abstrata, não receberam disciplina constitucional.
O texto da Constituição, todavia, faz menção a duas delas: a de
telecomunicações (art. 21, XI) e a de petróleo (art. 177, § 2º, III).
90Sobre
este tema específico, v. os projetos de doutoramento de Gustavo Binenbojm,
Direitos fundamentais, democracia e Administração Pública, 2003, e de Arícia
Corrêa Fernandes, Por uma releitura do princípio da legalidade administrativa
e da reserva de Administração, 2003, ambos apresentados ao Programa de
Pós-gradução em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
sob minha orientação. V. tb. V. Patrícia Batista, Transformações do direito
administrativo, 2003; e Gustavo Binenbojm, Da supremacia do interesse público
ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo,
Revista de Direito Administrativo 239:1, 2005.
91Esta classificação, de origem
italiana, é pouco disseminada na doutrina e na jurisprudência brasileiras. V.
Renato Alessi, Sistema Istituzionale del diritto administrativo italiano, 1960,
p. 197, apud Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo,
2003, p. 57. Depois de Celso Antônio, outros autores utilizaram esta
distinção. V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito
administrativo, 1997, p. 429 e ss..
92Para um aprofundamento dessa discussão, v.
meu prefácio ao livro de Daniel Sarmento (org.), Interesses públicos versus
interesses privados: Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse
público, 2005. V. tb., naturalmente, o próprio livro, do qual constam textos
de grande valia sobre o tema, escritos por Humberto Ávila, Paulo Ricardo
Schier, Gustavo Binenbojm, Daniel Sarmento e Alexandre Aragão. O texto de
Humberto Ávila foi pioneiro na discussão da matéria. Sob outro enfoque,
merece referência o trabalho de Fábio Medina Osório, Existe uma supremacia do
interesse público sobre o privado no direito brasileiro?, Revista de Direito
Administrativo 220:107, 2000.
93Sobre princípios constitucionais da
Administração Pública, v. Carmen Lúcia Antunes Rocha, Princípios
constitucionais da Administração Pública, 1994; Romeu Bacellar, Princípios
constitucionais do processo administrativo disciplinar, 1998; Juarez Freitas,
O
controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, 1999; Ruy
Samuel Espíndola, Princípios constitucionais e atividade
jurídico-administrativa: Anotações em torno de questões contemporâneas,
Interesse Público 21:57, 2003.
94Não é possível aprofundar o tema, que é rico
e intrincado, sem um desvio que seria inevitavelmente longo e descabido nas
circunstâncias. Vejam-se, sobre a questão: Pietro Perlingieri, Perfis de
direito civil, 1997, p. 17; Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um
direito civil constitucional, Revista de Direito Civil 65:23, 1993, p. 25; e
Gustavo Tepedino, Premissas metodológicas para a constitucionalização do
direito civil. In: Temas de direito civil, 2004, p. 19: "Daí a inevitável
alteração dos confins entre o direito público e o direito privado, de tal
sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser quantitativa, nem
sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e
qual o território do direito privado. Em outras palavras, pode-se provavelmente
determinar os campos do direito público ou do direito privado pela prevalência
do interesse público ou do interesse privado, não já pela inexistência de
intervenção pública nas atividades de direito privado ou pela exclusão da
participação do cidadão nas esferas da administração pública. A
alteração tem enorme significado hermenêutico, e é preciso que venha a ser
absorvida pelos operadores".
95 Como, por exemplo, nos casos de racismo,
tortura, ação de grupos armados contra a ordem constitucional, crimes
ambientais e violência contra a criança, dentre outras referências expressas.
V. arts. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV, 7º, X, 225, § 3º e 227, § 4º.
96Como
por exemplo: "Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e
penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos"; "Art.
5º. (...) XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais
abertos ao público, independentemente de autorização (...); XVII - é plena a
liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter
paramilitar".
97É o caso de tipos previstos no Código Penal (CP), como os
de sedução (art. 217), adultério (art. 240) ou de escrito obsceno, assim
descrito: "Art. 234. Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua
guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública,
escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno: Pena -
detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa".
98Duas decisões do
Supremo Tribunal Federal exemplificam o argumento. Na primeira, concedeu-se
habeas corpus em favor de um jovem acusado de estupro, por haver mantido
relação sexual com uma menina de 12 anos. Por maioria, decidiu a Corte que a
presunção de violência do art. 224 do CP é relativa e que o crime não se
configurava, à vista de elementos do caso concreto - consentimento da vítima e
sua aparência de ter mais de 14 anos - que tornariam extremamente injusta a
aplicação literal do dispositivo do Código Penal (STF, DJU 20 set. 1996, HC
73662-MG, Rel. Min. Marco Aurélio). Num outro caso, a Corte trancou a ação
penal promovida contra ex-Prefeita Municipal, pela contratação de boa-fé, mas
sem concurso público, de um único gari. O fundamento utilizado foi a
insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, gerando falta de
justa causa para a ação penal (STF, DJU 11 set. 1998, HC 77003-4, Rel. Min.
Marco Aurélio). Sobre o tema da interpretação conforme a eqüidade, de modo a
evitar a incidência iníqua de determinada regra, v. Ana Paula de Barcellos,
Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005.
99O presente
parágrafo beneficia-se da discussão de idéias trazidas por Valéria Caldi de
Magalhães, Constitucionalização do direito e controle de constitucionalidade
das leis penais: Algumas considerações, mimeografado, 2005, trabalho de final
de curso apresentado na disciplina Interpretação Constitucional, do Programa
de Pós-graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ. Averbou a autora: "Ao mesmo tempo em que o funda e
autoriza, a Constituição reduz e limita o direito penal, na medida em que só
autoriza a criminalização de condutas que atinjam de modo sensível um bem
jurídico essencial para a vida em comunidade. Este é o papel do direito penal:
atuar como última ratio, quando seja absolutamente necessário e não haja
outros mecanismos de controle social aptos a impedir ou punir aquelas
lesões".
100Lênio Luiz Streck e Luciano Feldens,
Crime e Constituição,
2003, p. 44-5: "No campo do Direito Penal, em face dos objetivos do Estado
Democrático de Direito estabelecidos expressamente na Constituição
(erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais,
direito à saúde, proteção do meio-ambiente, proteção integral à criança
e ao adolescente, etc.), os delitos que devem ser penalizados com (maior) rigor
são exatamente aqueles que, de uma maneira ou outra,
obstaculizam/dificultam/impedem a concretização dos objetivos do Estado Social
e Democrático. Entendemos ser possível, assim, afirmar que os crimes de
sonegação de tributos, lavagem de dinheiro e corrupção (para citar apenas
alguns) merecem do legislador um tratamento mais severo que os crimes que dizem
respeito às relações meramente interindividuais (desde que cometidos sem
violência ou grave ameaça)".
101É o caso da disciplina penal dada pela Lei
nº 9.677/98 (Lei dos Remédios) à adulteração de cosméticos. O delito é
equiparado à adulteração de medicamentos que, por sua vez, prevê penas
mínimas superiores à do crime de homicídio para a falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins
terapêuticos ou medicinais (CP, art. 273 e § 1º, a). Sobre o tema, v. Miguel
Reale Júnior, A inconstitucionalidade da Lei dos Remédios, Revista dos
Tribunais 763:415, 1999. Outro exemplo é o da Lei nº 9.437/97, que em seu art.
10 pune com penas idênticas o porte de arma de fogo e o porte de arma de
brinquedo. Sobre a proporcionalidade no âmbito do direito penal, v. Ingo
Sarlet, Constituição e proporcionalidade: O direito penal e os direitos
fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência, Revista de
Estudos Criminais 12:86, 2003.
102 Valéria Caldi de Magalhães,
Constitucionalização do direito e controle de constitucionalidade das leis
penais: algumas considerações, mimeografado, 2005, p. 15, considera de
"duvidosa constitucionalidade" a previsão legal de extinção da
punibilidade de crimes contra a ordem tributária, em razão do pagamento do
tributo antes e, até mesmo, após o recebimento da denúncia. A matéria é
disciplinada pelo art. 34 da Lei nº 9.249/95 e pelo art. 9º da Lei nº
10.684/2003.
103STF, ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio. Por 7 votos a 4, o STF
decidiu conhecer da ação e apreciar-lhe o mérito. Alguns dos argumentos
apresentados pela autora da ação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde foram os seguintes: (i) atipicidade do fato: pelo direito positivo
brasileiro, a vida se extingue pela morte encefálica; o feto anencefálico não
chega sequer a ter vida cerebral (princípio da legalidade); (ii) exclusão da
punibilidade: o Código Penal determina a não punição nos casos de risco de
morte para a mãe e de estupro; tais situações, por envolverem feto com
potencialidade de vida, são mais drásticas do que a da anencefalia, que só
não foi prevista expressamente por inexistirem recursos tecnológicos de
diagnóstico, quando da elaboração do Código Penal, em 1940 (interpretação
evolutiva); (iii) violação do princípio da dignidade da pessoa humana, tanto
na versão da integridade física quanto psíquica, pela imposição de
sofrimento imenso e inútil à mulher, obrigando-a a levar a termo uma
gestação inviável.
104A Constituição de 1988 manteve o sistema eclético,
híbrido ou misto, combinando o controle por via incidental e difuso (sistema
americano), que vinha desde o início da República, com o controle por via
principal e concentrado, implantado com a EC n° 16/65 (sistema continental
europeu). V. Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito
brasileiro, 2004.
105O tema é ainda pouco explorado na doutrina. V., no entanto, o
trabalho-pesquisa elaborado por Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho,
Manuel Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicialização da política e
das relações sociais no Brasil, 1999. E também, para duas visões diversas,
Luiz Werneck Vianna (org.), A democracia e os três Poderes no Brasil, 2002, e
Rogério Bastos Arantes, Ministério Público e política no Brasil, 2002. Para
uma análise crítica desses dois trabalhos, v. Débora Alves Maciel e Andrei
Koerner, Sentidos da judicialização da política: Duas análises, Lua Nova
57:113, 2002.
106No direito comparado, no qual o tema é discutido de longa data,
v., exemplificativamente: Hamilton, Madison e Jay, The federalist papers, 1981
(a publicação original foi entre 1787 e 1788), especialmente O Federalista
n°
78; John Marshall, voto em Marbury v. Madison [5 U.S. (1 Cranch)], 1803; Hans
Kelsen, Quién debe ser el defensor de la Constitución, 1931; Carl Schmitt,
La
defensa de la constitución, 1931; John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980;
Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986; Ronald Dworkin, A matter of
principle, 1985; John Rawls, A theory of justice, 1999; Jürgen Habermas,
Direito e democracia: Entre facticidade e validade, 1989; Bruce Ackerman, We the
people: Foundations, 1993; Carlos Santiago Nino, La Constitución de la
democracia deliberativa, 1997. Na literatura nacional mais recente, vejam-se:
Bianca Stamato Fernandes, Jurisdição constitucional, 2005; Gustavo Binenbojm,
A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004; Cláudio de Souza Pereira
Neto, Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade
prática, 2002;
José Adércio Leite Sampaio, A Constituição reinventada pela jurisdição
constitucional, 2002.
107V. Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos
fundamentais e controle das políticas públicas, Revista de direito
administrativo 240, 2005; e Marcos Maselli Pinheiro Gouvêa, O controle judicial
das omissões administrativas, 2003. Abordagens iniciais da questão podem ser
encontradas em Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade
de suas normas, 2003; e Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos
fundamentais, 2004.
108A expressão "dificuldade contra-majoritária"
(the counter-majoritarian difficulty) foi cunhada por Alexander Bickel, The
least dangerous branch, 1986, p. 16, cuja 1a. edição é de 1962.
109Sobre o tema,
vejam-se Cláudio Pereira de Souza Neto, Jurisdição, democracia e
racionalidade prática, 2002; José Adércio Leite Sampaio, A Constituição
reinventada pela jurisdição constitucional, 2002; Bianca Stamato, Jurisdição
constitucional, 2005.
110V., especialmente, Ana Paula de Barcellos,
Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas
públicas, Revista de direito administrativo 240, 2005. Em duas passagens,
sintetiza a autora, de maneira feliz, os dois pólos da questão: "Em um
Estado democrático, não se pode pretender que a Constituição invada o
espaço da política em uma versão de substancialismo radical e elitista, em
que as decisões políticas são transferidas, do povo e de seus representantes,
para os reis filósofos da atualidade: os juristas e operadores do direito em
geral". Porém de outra parte: "Se a Constituição contém normas nas
quais estabeleceu fins públicos prioritários, e se tais disposições são
normas jurídicas, dotadas de superioridade hierárquica e de centralidade
no
sistema, hão haveria sentido em concluir que a atividade de definição das
políticas públicas - que irá ou não realizar esses fins - deve estar
totalmente infensa ao controle jurídico. Em suma: não se trata da absorção
do político pelo jurídico, mas apenas da limitação do primeiro pelo
segundo" (grifos no original).
111Os conceitos de teoria e de filosofia
constitucional não se confundem, mas vêm se aproximando, como notou Cláudio
Pereira de Souza Neto, A teoria constitucional e seus lugares específicos:
Notas sobre o aporte reconstrutivo. In: Direito constitucional contemporâneo:
estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides, 2005, p. 87 e ss.:
"Tradicionalmente, a teoria da constituição se destinava à
identificação, análise e descrição do que 'é' uma constituição. Hoje,
contudo, abrange também o campo das indagações que versem sobre o que a
constituição 'deve ser', i. e., incorpora dimensões racional-normativas, as
quais se situam na seara do que se vem denominando 'filosofia
constitucional'".
112Em Dred Scott vs. Sandford [60 U.S. (10 How.) 393],
julgado em 1857, a Suprema Corte considerou serem inconstitucionais tanto as
leis estaduais como as federais que pretendessem conferir cidadania aos negros,
que eram vistos como seres inferiores e não tinham proteção constitucional.
Na mais condenada decisão do constitucionalismo americano, a Suprema Corte
alinhou-se com a defesa da escravidão. Muitos anos se passaram até que o
Tribunal recuperasse sua autoridade moral e política. V. Nowack, Rotunda e
Young, Constitutional law, 2000, p. 687.
113A partir do final do século XIX, a
Suprema Corte fez-se intérprete do pensamento liberal, fundado na idéia do
laissez faire, pelo qual o desenvolvimento é melhor fomentado com a menor
interferência possível do Poder Público. A decisão que melhor simbolizou
esse período foi proferida em 1905 no caso Lochner vs. New York (198 U.S. 45),
na qual, em nome da liberdade de contrato, considerou-se inconstitucional uma
lei de Nova York que limitava a jornada de trabalho dos padeiros. Sob o mesmo
fundamento, a Suprema Corte invalidou inúmeras outras lei. Esse período ficou
conhecido como era Lochner.
114Eleito em 1932, após a crise de 1929, Franklin
Roosevelt deflagrou o New Deal, programa econômico e social caracterizado pela
intervenção do Estado no domínio econômico e pela edição de ampla
legislação social. Com base na doutrina desenvolvida na era Lochner, a Suprema
Corte passou a declarar inconstitucionais tais leis, gerando um confronto com o
Executivo. Roosevelt chegou a enviar um projeto de lei ao Congresso, ampliando a
composição da Corte - Court-packing plan -, que não foi aprovado. A Suprema
Corte, no entanto, veio a mudar sua orientação e abdicou do exame do mérito
das normas de cunho econômico e social, tendo por marco a decisão proferida em
West Coast vs. Parrish (300 U.S. 379), datada de 1937.
115Veja-se o registro dessa
mudança em Larry D. Kramer, Popular constitutionalism, circa 2004, California
Law Review 92:959, 2004, p. 964-5: "(The Warren Court), for the first time
in American history, gave progressives a reason to see the judiciary as a friend
rather than a foe. This had never been a problem for conservatives. Going all
the way back to the Federalist era, conservatives had always embraced an idea of
broad judicial authority, including judicial supremacy, and they continued to do
so after Chief Justice Warren took over. For them, the problem with the Warren
Court was simply that its decisions were wrong. (…) Beginning with Robert
Bork's 1968 attack on the Court in Fortune Magazine, many conservatives started
to assail the Court using the traditionally liberal rhetoric of
countermajoritarianism".
116Earl Warren presidiu a Suprema Corte de 1953 a
1969; Warren Burger, de 1969 a 1986. Algumas decisões emblemáticas desses
períodos foram: Brown vs. Board of Education (1954), que considerou
inconstitucional a política de segregação racial nas escolas públicas;
Griswold vs. Connecticut (1965), que invalidou lei estadual que incriminava o
uso de pílula anticoncepcional, reconhecendo um direito implícito à
privacidade; e Roe vs. Wade (1973), que considerou inconstitucional lei estadual
que criminalizava o aborto, mesmo que antes do terceiro mês de gestação. No
domínio do processo penal, foram proferidas as decisões marcantes já
mencionadas (v. supra), em casos como Gideon vs. Wainwright (1963) e Miranda vs.
Arizona (1966)
117A crítica de viés conservador, estimulada por longo período de
governos republicanos, veio embalada por uma corrente doutrinária denominada de
originalismo, defensora da idéia pouco consistente de que a interpretação
constitucional deveria ater-se à intenção original dos criadores da
Constituição. Sobre o tema, v. Robert Bork, The tempting of América, 1990, e
William Rehnquist, The notion of a living Constitution, Texas Law Review 54:693,
1976. Em sentido oposto, v. Morton J. Horwitz, Foreword: the Constitution of
change: legal fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review 107:30,
1993, e Laurence Tribe, American constitutional law, 2000, p. 302 e s. Para uma
análise ampla dessa temática em língua portuguesa, v. Bianca Stamato,
Jurisdição constitucional, 2005.
118 Vejam-se alguns textos escritos nos últimos
anos. Em favor do "popular constitutionalism", v.: Larry D. Kramer,
The people themselves: Popular constitutionalism and judicial review, 2004; Mark
Tushnet, Taking the Constitution away from the courts, 1999; Jeremy Waldron,
The
dignity of legislation, 1999; Richard D. Parker, "Here the people
rule": A popular constitutionalist manifest, 1994. Em defesa do
"judicial review", v.: Cristopher L. Eisgruber's, Constitutional
self-government, 2001; Erwin Chemerinsky, In defense of judicial review: A reply
to professor Kramer, California Law Review 92:1013, 2004; Frederick Schauer,
Judicial supremacy and the modest Constitution, Californa Law Review 92: 1045.
119Christopher L. Eisgruber, Constitutional self-government and judicial review: A
reply to five critics, University of San Francisco Law Review 37:115, 2002, p.
119-31.
120A jurisdição constitucional legitimou-se, historicamente, pelo
inestimável serviço prestado às duas idéias centrais que se fundiram para
criar o moderno Estado democrático de direito: constitucionalismo (i.e., poder
limitado e respeito aos direitos fundamentais) e democracia (soberania popular e
governo da maioria). O papel da corte constitucional é assegurar que todos
estes elementos convivam em harmonia, cabendo-lhe, ademais, a atribuição
delicada de estancar a vontade da maioria quando atropele o procedimento
democrático ou vulnere direitos fundamentais da minoria. Um bom exemplo foi a
decisão do STF reconhecendo o direito público subjetivo, assegurado às
minorias legislativas, de ver instaurada Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI dos Bingos). Diante da inércia dos líderes partidários em indicar
representantes de suas agremiações, a Corte concedeu mandado de segurança
para que o próprio Presidente do Senado designasse os nomes faltantes. V. Inf.
STF 393, MS 24.831, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22 jun. 2005.
121V. Vital Moreira,
O futuro da Constituição. In: Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra
Filho, Estudos em homenagem a Paulo Bonavides, 2001, p. 323: "Na fórmula
constitucional primordial, 'todo poder reside no povo'. Mas a verdade é que, na
reformulação de Sternberger, 'nem todo o poder vem do povo'. Há o poder
econômico, o poder mediático, o poder das corporações sectoriais. E por
vezes estes poderes sobrepõem-se ao poder do povo".
122Luís Roberto Barroso,
Disciplina legal dos direitos do acionista minoritário e do preferencialista.
Constituição e espaços de atuação legítima do Legislativo e do
Judiciário. In: Temas de direito constitucional, t. III, 2005, p. 314-5:
"Como já referido, porém, a Constituição não ocupa, nem pode pretender
ocupar todos os espaços jurídicos dentro do Estado, sob pena de asfixiar o
exercício democrático dos povos em cada momento histórico. Respeitadas as
regras constitucionais e dentro do espaço de sentido possível dos princípios
constitucionais, o Legislativo está livre para fazer as escolhas que lhe
pareçam melhores e mais consistentes com os anseios da população que o
elegeu. A disputa política entre diferentes visões alternativas e plausíveis
acerca de como dar desenvolvimento concreto a um princípio constitucional é
própria do pluralismo democrático. A absorção institucional dos conflitos
pelas diversas instâncias de mediação, com a conseqüente superação da
força bruta, dá o toque de civilidade ao modelo. Mas não é possível
pretender derrotar a vontade majoritária, em espaço no qual ela deva
prevalecer, pela via oblíqua de uma interpretação jurídica sem lastro
constitucional. Ao agir assim, o intérprete estaria usurpando tanto o papel do
constituinte quanto do legislador".
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*Advogado do escritório Luís
Roberto Barroso & Associados
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